A reunião de especialistas desta terça-feira foi a última em que participou Manuel Carmo Gomes, que pediu para sair do grupo que tem acompanhado a evolução da pandemia no país e aconselhado o Governo. Saiu por motivos de agenda pessoal, garante, mas não deixou de fazê-lo sem antes agitar as águas como nunca até aqui ao pôr em causa toda a estratégia do Governo de combate à Covid-19. “Andamos atrás da pandemia“, criticou no Infarmed, com o primeiro-ministro a ouvi-lo em videoconferência e a ministra da Saúde ao lado a dedilhar o seu telemóvel enquanto ouvia o epidemiologista.

A decisão de Manuel Carmo Gomes já estava tomada antes da reunião e foi anunciada pelo primeiro-ministro no final do encontro. António Costa aproveitou a boleia e deixou como desafio aos especialistas que se mantêm no grupo para “consensualizarem posições sobre as linhas vermelhas apresentadas” por Carmo Gomes, segundo apurou o Observador segundo fontes presentes na reunião. E não foi único trabalho de casa que deixou aos peritos (ver mais abaixo).

Com isto o primeiro-ministro quis deixar logo ali um sinal de que tinha ouvido os avisos e recomendações do professor da Faculdade de Ciência da Universidade de Lisboa que já tinha contrariado as posições do Governo noutras reuniões.

Manuel Carmo Gomes é epidemiologista da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa

A intervenção de Carmo Gomes na reunião desta terça-feira foi vista por alguns dos representantes dos partidos que participaram no encontro como “surpreendente” e “brutal“. Aliás, ele já tinha sido um dos protagonistas da grande cisão da reunião de 12 de janeiro, na sequência da qual o Governo decidiu não fechar as escolas para voltar atrás poucos dias depois. Nesse dia, Manuel Carmo Gomes defendeu o encerramento das escolas para crianças com mais de 12 anos, tendo sido contrariado por Henrique Barros, cuja posição acabou por vingar. Nove dias depois, o Governo reviu a medida e fechou tudo.

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Agora o epidemiologista da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa usou esse capital de crédito e disse a António Costa que a sua estratégia de combate à epidemia está errada porque não basta confinar, é preciso testar.

Ninguém quis saber de Presidenciais numa reunião marcada pelo despique entre especialistas

Na sua intervenção, o epidemiologista até começou por elogiar o Conselho de Ministros pela decisão de 21 de janeiro de aumentar as restrições de circulação e que se se tivesse mantido “um confinamento leve”, “o pico teria aparecido mais longe, mas alto e mais prolongado”. Apesar da “redução drástica dos casos” a partir do momento em que foram tomadas as medidas mais pesadas, o especialista adiantou logo uma preocupação: que o número de testes feitos desça conforme a incidência da epidemia desce. “É uma relação patológica“, criticou, “preocupante” e que “não é desejável”. Tanto mais quando “a percentagem de casos positivos entre os testes foi muito alta e as organizações internacionais recomendam 5% e nós chegámos a ter 20%”, assinalou.

A crítica maior chegaria precisamente neste ponto, com Carmo Gomes a voltar ao exemplo da mola para desmontar a estratégia seguida de confinamento sem data para terminar. “Temos de manter a mola apertada para o vírus estar em baixo, mas como retiramos a mão da mola sem deixar que venha por aí acima? Com a testagem. Temos de pôr na mola um peso idêntico ao do pé. É este o papel que a testagem tem, é a arma principal que temos de usar e não o confinamento”. 

Aliás, o especialista defende mesmo que esta estratégia até poderia encurtar os períodos de confinamento, argumentando que “é preferível ter duas semanas com resposta muito forte em que confinamos, do que estar duas, três, quatro, cinco, seis ou sete semanas para trazer a incidência para baixo”. E indicou mesmo que se aumentem os “testes antigénio para deteção muito mais rápida das pessoas infetadas há pouco tempo e evitar que se propaguem as cadeias de transmissão.

Para o especialista, o país tem, neste momento, “o pé na mola porque estamos todos em casa, mas sem saber como sair do confinamento sem deixar que a mola venha por aí acima outra vez e, naturalmente, agravada pela presença de novas variantes do vírus”. “Isto só é possível com o aumento da testagem”, disse.

No final da reunião, à porta do Infarmed, a ministra da Saúde acabou por assumir que já tinha pedido à Direção Geral de Saúde que fosse alterado o “critério técnico” para a realização de testes. Nomeadamente aquele que determina que só se testem os contactos de maior risco.

Depois disso, também António Costa veio dizer, através da sua conta do Twitter, que “é necessário continuar a investir na testagem massiva e na capacidade de rastreamento”. Além de assumir também o que era já incontornável — e defendido pelos especialistas no Infarmed –, “o prolongamento do atual nível de confinamento“.

Ainda a propósito deste desafio de Carmo Gomes, António Costa também interveio, no final da reunião, para dizer que o rastreio epidemiológico só não correu melhor por parte dos médicos porque houve muito corporativismos. A tirada do primeiro-ministro foi contada ao Observador por fonte que esteve na reunião e que também já se reuniu com o Presidente da República esta tarde tendo ouvido Marcelo a sublinhar o que entendei como “um recado do primeiro-ministro para dentro do Ministério da Saúde”.

Além disso, nesta intervenção final, o primeiro-ministro também foi claro sobre a necessidade de o Presidente renovar o estado de emergência não só por 15 dias como também por outros quinze, deixando clara — o que confirmou publicamente — a sua intenção de manter as atuais medidas até ao final de março.

“Não conseguimos controlar o vírus desta maneira”

Mas esta era apenas parte do problema (e da solução) que Carmo Gomes levava para deixar na sua última participação na reunião de peritos. O especialista aproveitou também o momento para ir bem além da apresentação de dados epidemiológicos e considerou seu “dever” enquanto especialista na matéria deixar ali “uma reflexão estratégica”. E começou mesmo por pegar nas palavras do primeiro-ministro para afirmar que “o mês de janeiro foi muito mau em termos de saúde pública em Portugal”. A responsabilidade, essa, atribuiu-a precisamente a António Costa.

“Andamos a ler indicadores epidemiológicos que normalmente chegam com atraso, a adotar medidas em resposta que parecem adequadas à situação, levamos 15 dias para ver o resultado das medidas, normalmente não são suficientes e voltamos a tomar medidas”. Uma “resposta gradualista”, classificou, por oposição à “resposta agressiva” que entende ser necessária.

Não conseguimos controlar um vírus que cresce exponencialmente desta maneira e, a certa altura, a sociedade começa a dividir-se entre os que acham que o Governo tomou medidas demasiado fortes e outros que acham que não foram suficientemente fortes”. “É o resultado de andarmos atrás da pandemia”, concluiu.

O especialista chamou a atenção para um gráfico de março do ano passado que considera ser “contra intuitivo, já que durante um mês passa a sensação que está a haver uma variação linear da epidemia e que a conseguimos controlar. E que, por exemplo, o país entrou no Natal com “3.500 casos e com um descuido de cinco dia, passámos para 12 mil casos em seis semanas apenas”. E concluiu que esta estratégia “é insuficiente”, apontando antes uma “forma de agir muito agressiva”, apoiando-se nas reflexões feitas por 871 especialistas de toda a Europa.

Assim, defende que sejam fixadas  três “linhas vermelhas” claras para todos. São estas que António Costa quer que sejam debatidas entre os peritos e que sejam apresentada uma posição consensual na próxima reunião do Infarmed:

  • Ter um R (o índice de transmissibilidade) que não ultrapasse 1,1%;
  • A percentagem de testes positivos “não permita a positividade chegar aos 10%, deve estar nos 5%”;
  • Ter uma incidência que não ultrapasse o nível adequado ao que o Ministério da Saúde acha adequado para gerir doentes Covid e não Covid, não ultrapassando os 2 mil novos casos por dia.

Além disto, o especialista defende ainda um “grande esforço” para travar a importação de variantes, com “ações decisivas nos pontos de entrada e saída do país” e o aumento da vigilância molecular.

Estas regras “objetivas” que defende, deviam “ser conhecidas com antecedência” para as pessoas perceberem, numa altura em que todos se questionam sobre quando será possível aliviar medidas. Para o especialista, “estamos longe disso“. Esta estratégia permitiria “ganhar tempo” para vacinar a população de risco, com Carmo Gomes a dizer que o país precisa “desesperadamente” desse tempo para vacinas o total dos 1.4 milhões de pessoas que compõem a população de risco.

Os TPC deixados por António Costa

Agora, o primeiro-ministro não só quer que lhe consolidem consenso sobre indicadores que devam ser linhas vermelhas, tal como propõs o epidemiologista da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, como também pediu dados concretos para decidir e preparar o desconfinamento.

António Costa pretende, segundo fonte do Governo, “envolver mais as ciências comportamentais para perceber melhor o que é efeito mecânico das limitações e o que é efeito da maior percepção de risco que as limitações induzem”.

Aos parceiros sociais encomendou para a próxima reunião do Infarmed um estudo sobre o impacto da manutenção do confinamento a nível socio-económico e se lhe parecem mais adequadas medidas graduais ou um confinamento e desconfinamento intermitentes. Ou seja, se o melhor para a economia é uma gestão localizada e gradual como a que aconteceu entre Setembro e Dezembro (por concelhos, e por horários) ou confinamentos totais de 15 dias intermitentes, cada vez que se atingir uma das linhas vermelhas propostas por Carmo Gomes.

Quanto a Carmo Gomes, deixou entre muitas críticas estas reuniões, com fonte próxima a explicar ao Observador que a Faculdade “vai continuar a fazer a monitorização da epidemia e os dados vão ser partilhados com a academia, com os peritos envolvidos no aconselhamento técnico”. O próprio havia de acrescentar isso mesmo numa entrevista em direto durante a tarde à Sic-Notícias.

A mesma fonte garante que a saída de Carmo Gomes não se deve a “uma questão de divergências com a atuação do Governo” e que “a decisão já foi tomada antes da preparação para esta reunião no Infarmed”. “[Carmo Gomes] não vai participar mais nas reuniões porque tem uma carga horária de aulas muito pesada e tem tido muito trabalho na Comissão Técnica, mas não houve alívio na carga de trabalho na docência. É uma carga imensa, está cansadíssimo, mesmo exausto“.

Artigo atualizado às 18h30 com mais dados sobre a reunião de peritos no Infarmed