O amor, dirão os mais românticos, ultrapassa todas as barreiras e obstáculos, mesmo que sejam uma pandemia mortífera que aparenta não querer dar tréguas e um confinamento apertado que o procura travar. É por isto mesmo que neste fevereiro de 2021, com o novo coronavírus ainda a correr o mundo de uma ponta a outra, não faltam ofertas adaptadas aos tempos de hoje para que esses mesmos românticos não tenham de deixar de parte o Dia dos Namorados. Há menus temáticos, packs de bebidas apaixonadas e por entre as mil e uma ofertas há uma que é rainha — o chocolate.
Não há alimento ou ingrediente que melhor expresse a paixão nutrida por outra pessoa que este básico do Dia de São Valentim: o chocolate, o verdadeiro “fruto” do amor — esqueça a banana, como dizia a música. Mas de onde vem esta ligação? Porque se tornou esta guloseima um símbolo do enamoramento? A conexão, diz o The Economist, já vem de longe.
Tudo começa no cacau, o ingrediente base do chocolate. A primeira vez que adquiriu significado social foi na Mesoamérica, desde 2 000 a.C., quando os grãos já eram usados para dar sabor a alimentos e fazer bebidas. Maias e Aztecas chegaram até a usá-lo como moeda de troca e, de forma geral, este ingrediente era elemento de várias oferendas e rituais — alguns deles já ligados à fertilidade e ao amor. As bebidas à base de cacau, que eram temperadas com especiarias, mel ou flores, costumavam ser oferecidas e degustadas em momentos importantes como nas negociações entre um pretendente e seu futuro sogro.
Só quando os colonizadores europeus chegaram ao então chamado “Novo Mundo”, o seu contacto com esta iguaria foi pautado pelo ceticismo já que o sabor era muito forte para os palatos do Velho Continente — tinha um amargor característico que só foi ultrapassado quando na Europa o começaram a “cortar” com açúcar. O tempo e a habituação acabaram por seduzir exploradores como Hernán Cortés e companhia, tanto que acabaram por levar os grãos de volta para suas terras natais. Inicialmente, o chocolate era “o” privilégio da realeza e das elites, alguns até o mantinham quase em segredo. As cortes de Itália (os que mais cedo se aventuraram a experimentar este ingrediente, misturando-o com polenta ou fígado), França e Espanha foram quem mais rápido assimilou esta novidade que vinha de além-mar. Em Portugal, ainda assim, a relação com o chocolate nunca foi tão intensa como na vizinha Espanha.
“Apesar do chocolate ter chegado a Portugal praticamente ao mesmo tempo a que chegou a Espanha, eles assimilaram-nos muito mais do que nós”, conta ao Observador a autora Fátima Moura, que assinou o livro “Do Cacau ao Chocolate” em 2018. “O chocolate era mais comum na nobreza. Reis e nobres achavam graça ao chocolate — Dona Maria, por exemplo, até tinha um abastecimento regular de chocolate que guardava numas caixinhas especiais”, conta a autora. Ainda assim, o impacto desta iguaria foi sempre modesto, pelo menos até chegarmos aos anos 20/30.
Curiosamente, porém, foram “os nossos jesuítas os primeiros a cultivar cacau”, conta a autora na área da gastronomia. Isto porque até então “ele existia silvestre na Amazónia”. Esta visão pioneira foi também partilhada por D. João VI, que antecipando a independência do Brasil “trouxe uma série de coisas e o cacau que já tínhamos colocado na Baía foi uma delas” — de tal forma que com isso conseguimos ser “os primeiros a plantar chocolate em África”, principalmente em São Tomé e Príncipe, país que até hoje continua a ser um dos principais produtores de cacau no mundo.
Como muitos outros produtos vindos do Novo Mundo, o cacau inicialmente era visto como afrodisíaco, por um lado, e medicinal, por outro — “chegou a ser vendido em farmácias”. Por cá, ainda assim, a utilização mais comum era mesmo a de medicamento já que era visto como um energizante, por exemplo. O papel culinário, diz Fátima Moura, limitava-se a algumas “receitas de chocolate mais comuns nos seus congéneres da Europa dos fins do século XVII e do século XVIII: cremes, gelados, drageias e maçapão” — isto enquanto em Espanha, por exemplo, “há receitas conventuais com chocolate”.
Só a partir dos anos 20 é que o chocolate começa a ter um pouco mais de popularidade entre a generalidade dos portugueses, apesar da primeira fábrica moderna desta guloseima ter sido inaugurada em 1886 — “foi trazida por uns espanhóis, era na esquina da Avenida Dom Carlos I com a 24 de Julho, em Lisboa”, conta Fátima. Aos poucos, o chocolate generalizou-se em Portugal, principalmente através da associação “a festas como o Natal ou a Páscoa” — até mesmo às festas que “importávamos, como o Dia dos Namorados”. É curioso pensar que este produto doce feito de cacau foi substituindo “o pão doce e não doce”, que antes se costumava usar para fazer “as figuras comestíveis dos bichos ou dos corações” que se ofereciam nessas datas especiais.
A vida é como uma caixa de chocolates
As informações que chegaram aos tempos de hoje mostram que já na época medieval se ofereciam guloseimas aos respetivos amores. Charles, o duque de Orleães, por exemplo, escreveu o primeiro poema de amor associado ao Dia de São Valentim em 1415, quando estava preso na Torre de Londres e procurava comunicar com a sua esposa. Ainda assim, é preciso andar para a frente no tempo, até à Inglaterra vitoriana, para perceber como surge a noção mais forte do chocolate enquanto comida do romance, principalmente no Dia dos Namorados.
Richard Cadbury, o fundador da homónima empresa britânica de chocolate, terá sido o principal responsável por tornar o Dia dos Namorados em algo tão doce. Em 1861, a sua Cadbury teve a ideia de enfiar uma série de bombons de chocolate numa caixa em forma de coração a propósito do afamado dia 14 de fevereiro. Cadury defendia que era um presente rentável mesmo depois dos chocolates acabarem, já que os presenteados com estes corações podiam encher as caixas com lembranças dos seus amantes, uma vez esvaziadas.
No início do século XX, porém, os norte-americanos cimentaram ainda mais esta relação com a invenção dos “Kisses” da chocolateira Hershey, pequenos bombons com uma forma cónica achatada que vêm embrulhados em prata. Daí até aos dias de hoje o crescimento desta relação deu-se de forma intensa: que refeição do Dia dos Namorados estaria completa, por exemplo, sem o já clássico fondant de chocolate?
Por muito que se pense que esta ligação é um capricho exclusivo do mundo ocidental, a realidade não é bem assim, basta olhar para o Japão, por exemplo. Na década de 1950, começou a surgir uma tradição curiosa entre os doceiros nipónicos: no Dia dos Namorados faziam e vendiam chocolates em forma de coração especialmente direcionados às mulheres. A ideia era dar às compradoras destas guloseimas uma oportunidade de fazerem uma “kokuhaku”, ou seja, uma “confissão” de amor — algo que inicialmente foi visto como sendo inadequado para o comportamento de uma senhora de respeito, ideia que desde então se foi desvanecendo. Ao contrário da popularidade do chocolate no dia de São Valentim, algo que continua, ano a pós ano, a motivar milhões de vendas desta guloseima.