Dez anos depois do início da revolução que derrubou a ditadura de Muammar Kadhafi, a Líbia ainda não conseguiu sair do caos e os líbios, exaustos, continuam privados dos imensos recursos energéticos do país.

Madji, 36 anos, dentista em Tripoli, lembra-se da “centelha da revolução” em fevereiro de 2011. Era estudante quando no dia 15 desse mês, em Benghazi (leste), as forças líbias disparam sobre famílias que pediam justiça para os parentes massacrados em 1996 numa prisão para detidos políticos em Tripoli. Foi nesse ano “que percebi que vivíamos no terror”, diz.

O movimento de revolta conhecido como Primavera Árabe tinha partido da vizinha Tunísia, em janeiro, e inflamou a região do Norte de África e do Médio Oriente.

“Em várias cidades”, as pessoas “saíam espontaneamente” para as ruas, por “solidariedade”, conta à agência France-Presse, adiantando que “no início da revolta não se tratava de derrubar o regime (…), apenas de ter um pouco mais de liberdade, de justiça e de esperança”.

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Madji considera que a revolução “era necessária” e diz que ainda acredita nela, “embora 10 anos depois o país esteja ainda mergulhado na guerra, na violência e na confusão”.

Após anos de impasse no país dividido em dois campos, foram conseguidos progressos políticos “tangíveis” nos últimos meses, segundo o secretário-geral da ONU.

Acordou-se um cessar-fogo, registou-se uma recuperação na produção de petróleo e foi designado um primeiro-ministro interino, Abdel Hamid Dbeibah, para assegurar a transição até às eleições marcadas para dezembro.

Mas os desafios são colossais depois de 42 anos de ditadura e de uma década de violência, que se seguiu à intervenção internacional com cobertura da NATO desencadeada em março de 2011 e concluída em outubro do mesmo ano com a morte do “Guia” Kadhafi, perseguido até ao seu feudo de Sirte.

A Líbia continua minada pelas lutas de poder, a força das milícias, a presença dos mercenários estrangeiros, assim como a corrupção. As infraestruturas foram arrasadas e os serviços falham.

Na anarquia, o país tornou-se a placa giratória do tráfico de pessoas no continente. Dezenas de milhares de migrantes vindos da África subsaariana em busca do “El Dorado” europeu são vítimas dos traficantes, muitos morrem a tentar atravessar o Mediterrâneo.

Por outro lado, existem dezenas de milhares de deslocados e numerosos exilados que regressaram em 2011 para participar na construção democrática do país voltaram a partir.

“Dez anos depois da revolução, a Líbia é um Estado ainda mais desfigurado do que era com Kadhafi”, considera Emadeddin Badi, especialista da Iniciativa Global, sediada em Genebra.

“A situação é catastrófica para a população devido aos repetidos conflitos e às divisões”, lamenta Mazen Kheirallah, 43 anos, funcionário da Companhia Nacional de Eletricidade em Zawiya (oeste de Tripoli).

Salima Younis, uma secretária de 57 anos, de Tripoli, que diz ter estado todos estes anos “ocupada tentando, dia após dia, evitar as balas, literalmente”, fala da “raiva” dos “muitos que vivem numa (…) pobreza crescente, num país rico”. “É injusto ver tanto desperdício”, adianta.

O país com as maiores reservas de petróleo de África tem a economia em “depressão” depois de uma década de conflito. Em dezembro a produção atingiu os 1,2 milhões de barris/dia, quando há 10 anos era de 1,5 a 1,6 milhões de barris diariamente.

Com o dia a dia pontuado pela escassez de liquidez e gasolina, cortes de energia e inflação, os líbios “vão ficando cada vez mais pobres”, sublinha Emadeddin Badi.

“Com o aumento contínuo dos preços já não podemos viver dignamente”, refere Mazen Kheirallah, adiantando que a situação ainda se agravou com a pandemia de covid-19.

E alguns analistas não estão otimistas quanto ao futuro. “A situação estabilizou-se à superfície, mas o ímpeto diplomático é mais um subproduto de uma reticência momentânea em continuar a guerra do que um desejo real de chegar a uma solução”, considera Bari.

“Se olharmos para o número de líbios mortos diariamente, caiu muito. Mas no plano político (…) superámos as dificuldades? De modo nenhum”, afirma o investigador Jalel Harchaoui, assinalando que “a população está muito infeliz” e que “as elites são indiferentes ao (seu) sofrimento”.