Se Portugal adiar a administração da segunda dose das vacinas contra a Covid-19, as autoridades de saúde poderão aplicar a primeira a mais 200 mil idosos até ao fim de março, revelou o vice-almirante Henrique Gouveia e Melo, coordenador da task force para o plano de vacinação contra a Covid-19, numa audição na Comissão de Saúde na Assembleia da República esta manhã.
Em resposta às perguntas colocadas pelo deputado Ricardo Baptista Leite do PSD, partido que solicitou a presença do vice-almirante numa audição, Gouveia e Melo explicou que o facto de a vacina da AstraZeneca não dever ser dada aos idosos por decisão da Direção-Geral da Saúde (DGS) coloca um “constrangimento difícil” no plano de vacinação: as vacinas das outras marcas foram concentradas nas faixas etárias acima dos 65 anos.
É daqui que vem a incerteza sobre se Portugal vai cumprir os objetivos delineados no plano inicial de vacinação. Mas pode haver uma solução no horizonte: alargar o período entre a administração das duas doses, desimpedindo doses suficientes para conferir uma proteção inicial aos mais velhos sem que isso comprometa a imunidade de quem já recebeu a primeira dose.
“Quanto mais tempo se demora a alargar o prazo, menos antecipamos a vacinação de pessoas em maior risco”, defende o coordenador da task force, citando os pareceres de especialistas (e das próprias farmacêuticas) que já garantiram que o adiamento da segunda dose em pelo menos uma semana não vai invalidar a construção de uma imunidade contra o coronavírus.
Task force admite desviar enfermeiros para os centros de vacinação rápida
Gouveia e Melo diz que, com as taxas de contágios e a letalidade a decrescerem, há agora uma oportunidade para elevar a vacinação. Neste momento, Portugal tem capacidade para administrar até 70 mil vacinas por dia em esforço — embora não esteja a inocular tanta gente para gerir as doses disponíveis. No entanto, é necessário estender essa capacidade em 100 mil vacinas por dia num prazo relativamente curto.
Se os prazos de entregas de vacinas forem cumpridos — 2,5 milhões de vacinas no primeiro trimestre, 9 milhões no segundo, 14,2 no terceiro e 9,5 milhões no quarto e último trimestre — esse objetivo deve ser cumprido a partir de abril, se se cumprirem os prazos de entregas. Como? Através de postos de vacinação rápida, que já estão a ser preparados; e, se for necessário, recorrendo às farmácias comunitárias.
Uma possibilidade em cima da mesa é manter os centros de saúde a funcionar como estão e encontrar outros enfermeiros no mercado para fazer processos de vacinação rápida. Outra possibilidade é desviar parte desses enfermeiros nos centros de saúde para os centros de vacinação rápida, onde a capacidade de distribuição é maior — e que pode chegar às 20 a 25 inoculações por hora, ou seja, três a quatro vezes maior do que neste momento.
O mais confortável para o serviço nacional de saúde seria vacinar apenas 50 mil vacinas por dia, mas isso não é suficiente para cumprir os objetivos delineados no plano de vacinação: salvar vidas, garantir resiliência na resposta do Estado e libertar a economia e a sociedade. Por isso, no limite pode alocar-se 30% dos enfermeiros nos centros de saúde para os centros de vacinação. A percentagem que pode chegar a 60% em picos de distribuição.
De qualquer modo, se não for possível atingir a escala de vacinação que se pretende com os profissionais de saúde que já estão no sistema, será necessário contratar mais. Não deve haver constrangimentos, acredita Gouveia e Melo, dadas as circunstâncias que a pandemia criou.
Questionado sobre o grau de preparação do país para chegar à capacidade de 100 mil vacinações diárias, Gouveia e Melo diz que ele é “crescente”: as Administrações Regionais de Saúde (ARS) e as autarquias já foram convocadas e estão a trabalhar sobre o assunto, a norma da DGS referente a este processo está preparada e os militares estão a testar o modelo. “Estamos em condições de fazer bem este processo, mas, como em tudo na vida, uma coisa são as condições e outra é a execução”, ressalva.
“Devemos estar abertos a fazer um novo plano”, admite Gouveia e Melo
Ainda na semana passada, a coordenação da task force para o plano de vacinação contra a Covid-19 disse que não tinha reformulado o plano de vacinação delineado quando Francisco Ramos estava à cabeça deste grupo de trabalho — e apesar da escassez de vacinas contra a Covid-19 que o país vive. Agora, na audição no Parlamento, Gouveia e Melo admitiu que “devemos estar abertos a fazer um novo plano”.
Ainda assim, não será necessário criar um plano novo sempre que um obstáculo surje no caminho porque ele “não é estático” e é “adaptável”. Uma das mudanças que o plano pode vir a acomodar são hipotéticas alterações nas orientações para a vacina da AstraZeneca: o vice-almirante admite que ela possa vir a ser disponibilizada às faixas etárias mais velhas se os dados científicos vindos de outros países demonstrarem ser eficaz.
Outra mudança é o possível alargamento da vacinação aos estudantes nas áreas de saúde que trabalham nos hospitais e centros de saúde. Gouveia e Melo defende que o Estado deve proteger estes estudantes universitários se pede esforços por parte deles, por isso a task force equaciona adicionar estes estudantes aos grupos prioritários para vacinação.
Aliás, quaisquer trabalhadores em áreas com doentes Covid-19 devem ser protegidos com a vacina — mesmo que não sejam médicos ou enfermeiros. É que mesmo os auxiliares são vetores de transmissão do vírus, daí a importância de serem inoculados, realçou o coordenador. Já no setor privado, Gouveia e Melo garantiu que o número de profissionais de saúde vacinados vai aumentar “fortemente” até ao fim desta semana.
“Como militar, crio uma grande pressão” sobre as autoridades de saúde
Mas há muitos aspetos que não estão previstas nas funções do vice-almirante — nomeadamente aquilo que acontece a montante da chegada efetiva das vacinas ao país. É o próprio quem o sublinha quando responde a uma pergunta sobre o processo de negociação na compra das vacinas: afinal, não tem poder para discutir os melhores métodos para comprar mais vacinas. A sua função é “não perder oportunidade de salvar vidas”, gerindo as vacinas que acabam por chegar a Portugal.
O vice-almirante admite que as demoras na vacinação podem dar mais oportunidade ao vírus para entrar em mutação, o que pode comprometer a eficácia da vacinação, mas este é um problema “do mundo inteiro”, daí que vacinar o mais rapidamente seja tão fulcral.
Mesmo assim, “Como militar, crio uma grande pressão” para obter respostas pelas autoridades de saúde, assegura Gouveia e Melo, elogiando a DGS pela rapidez e pragmatismo da comunicação com a task force. Aliás, diz o vice-almirante que o primeiro esforço que exerceu referia-se à distribuição de doses sobrantes (que, recorde-se, vinha sofrendo problemas com a administração indevida em alguns pontos do país) ao sublinhar a responsabilização pelos desvios de vacinas.
Além disso, o vice-almirante diz ainda ter pedido aos centros de saúde e aos poderes políticos locais que convoquem os mais idosos para a vacinação, de modo a colmatar o problema da iliteracia digital, que impede muitos portugueses de marcar a vacinação a partir de uma SMS.