O despacho de encerramento do inquérito do caso EDP volta a estar no limbo. Depois de um recurso da defesa do ex-ministro Manuel Pinho para o Tribunal Constitucional a ameaçar parte do processo devido a um risco de prescrição (o que não se concretizou por o recurso ter sido rejeitado), é agora a vez de um novo incidente processual da defesa de João Manso Neto, ex-presidente da EDP Renováveis, colocar em risco a junção de uma parte importante da prova indiciária recolhida pelo Ministério Público: os emails de António Mexia e do próprio João Manso Neto.

Está em causa um recurso para o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) da defesa dos gestores que pretende a revogação de um acórdão da Relação de Lisboa que permitiu a junção dos emails dos ex-líderes da EDP aos autos. O advogado João Medeiros alega que há violação do caso julgado porque neste mesmo processo já houve uma decisão da Relação que confirmou a anulação da apreensão de emails da consultora BCG e de Rui Cartaxo, ex-presidente da REN, decidida por Ivo Rosa por falta de uma autorização prévia do próprio juiz de instrução criminal.

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Em suma: a defesa de João Manso Neto e António Mexia alega que a Relação de Lisboa não pode decidir de forma diferente sobre a mesma matéria e no mesmo processo, argumentando ainda que também no caso dos gestores da EDP não houve qualquer autorização prévia do juiz de instrução criminal.

Certo é que o recurso para o STJ tem efeito suspensivo e o Ministério Público não vai emitir o despacho de encerramento de inquérito enquanto não tiver uma certeza judicial sobre a validade da junção dos emails — que representam uma importante prova indiciária que os procuradores Carlos Casimiro e Hugo Neto reuniram contra os gestores da EDP.

Acórdão de Rui Teixeira censura visão de Ivo Rosa

No centro do recurso da defesa de João Manso Neto e de António Mexia está um novo acórdão da Relação de Lisboa de 27 de janeiro de 2021 que volta a colocar em causa a leitura restritiva que o juiz Ivo Rosa faz do uso de emails no caso EDP como prova indiciária e diz mesmo que o magistrado do Tribunal Central de Instrução Criminal nem sequer tem competência para apreciar a utilização dos emails trocados por António Mexia e João Manso Neto por parte do Ministério Público. Uma visão que o advogado João Medeiros entende que coloca em causa jurisprudência sobre esta matéria.

Os emails trocados entre os ex-líderes da EDP têm sido uma das principais provas indiciárias que o Ministério Público tem apresentado contra aqueles gestores. Por isso mesmo, a defesa de Mexia e Manso Neto tem interposto sucessivos recursos sobre a utilização dessa correspondência eletrónica, tentando defender pontos de vista semelhantes aos do juiz Ivo Rosa. Mas sem sucesso, até ao momento.

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É certo que o recurso de João Manso Neto para a Relação de Lisboa visava a última junção de emails que foi validada pelo juiz Carlos Alexandre (que substituiu Ivo Rosa como titular da instrução criminal do caso EDP por aquele magistrado estar em exclusividade na Operação Marquês), mas a rejeição do recurso por parte dos desembargadores Rui Teixeira e Cristina Almeida e Sousa acaba por colocar em causa a visão restritiva do juiz Ivo Rosa — que chegou a colocar sérias restrições na pesquisa dos emails — pelas seguintes razões:

  • “Os mails apreendidos eram correspondência aberta”, correspondendo a mensagens trocadas entre os arguidos e outros responsáveis da EDP e foram apreendidos nos servidores da elétrica, logo eram “arquivo morto”. A mesma leitura vale para os emails que ainda não tenham sido enviados e estejam em rascunho;
  • Assim, tal tipo de documento “não é diferente de uma folha de excel ou um documento word num computador”, lê-se no acórdão a que o Observador teve acesso.
  • Logo, os procuradores do Ministério Público  — e “não o juiz de instrução criminal — têm a competência legal de selecionar os emails que entenderem e juntar os mesmos aos autos, “não sendo necessária qualquer autorização judicial prévia à busca ou validação judicial subsequente da mesma”, lê-se no sumário do acórdão que foi publicado no site da Direção-Geral de Administração da Justiça.

Para o desembargador Rui Teixeira, relator do acórdão da Relação de Lisboa, o que foi feito pelo juiz Ivo Rosa ao longo do caso EDP “foi um exacerbar de direitos, uma excessiva afirmação de direitos dos arguidos quando a situação não reclama a larga e profunda proteção levada a a cabo.” A mesma crítica acaba por englobar os procuradores Carlos Casimiro e Hugo Neto, pois o Ministério Público tem solicitado autorização ao juiz de instrução criminal para juntar aos autos emails de Mexia e de Manso Neto como prova indiciária.

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Contudo, e precisamente devido a essa “assumpção de um procedimento mais garantístico do reclamado por lei”, tal irregularidade não leva à nulidade dos atos anteriores de Ivo Rosa — que já tinham sido anulados, refira-se.

Refira-se, por último, que o desembargador Rui Teixeira explica no seu acórdão que a intervenção do juiz de instrução criminal é necessária quando se trata de correio eletrónico que esteja em trânsito. Ou seja, que tenha sido enviado pelo remetente mas ainda não tenha sido aberto pelo destinatário. Só nessa situação é que se coloca a questão do segredo e a inviolabilidade da correspondência para defender a privacidade dos cidadãos — um argumento que é sistematicamente utilizado por Ivo Rosa. Mas que, enfatize-se, não era o que estava em causa no caso EDP.

“Numa situação corriqueira, o segredo de comunicações aquando do envio de uma carta inicia-se com o circuito normal de correio e termina com o fim do mesmo. Vale por dizer que a carta, mesmo selada e fechada, só é abrangida pelo segredo de comunicações quando sai da disponibilidade do remetente e é entregue ao cuidado do serviço postal. Esta carta, depois de entregue, só pode ser violada por ordem judicial. Entregue a carta ao seu destinatário e aberta a mesma por este, o documento que é a carta deixou de beneficiar do segredo e inviolabilidade de correspondência”, lê-se no acórdão da Relação de Lisboa.

A defesa de João Manso Neto e de António Mexia recusa totalmente esta visão sobre a lei do cibercrime. Além disso, alega que o acórdão de Rui Teixeira reconhece um dado fundamental: nunca foi solicitada uma autorização prévia ao juiz de instrução criminal para apreender as caixas de correio dos gestores da EDP.

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Não é a primeira vez — nem é o único caso — em que desembargadores diferentes, e que pertencem a secções igualmente distintas, consideram errada a visão de Ivo Rosa.

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A autêntica guerra entre o juiz Ivo Rosa e os procuradores Carlos Casimiro e Hugo Neto, titulares do caso EDP, começou precisamente pela utilização dos emails de Mexia e de Manso Neto. Ivo Rosa quis logo restringir a pesquisa nas respetivas caixas de correio (porque permitiria aceder a “uma grande quantidade de informação”) e determinou que fossem apenas pesquisados sete conjuntos de palavras — que levaram à recolha de apenas 47 emails.

O Ministério Público recorreu para a Relação de Lisboa e os desembargadores Carlos Espírito Santo e Anabela Cardoso não tiveram dúvidas em dar-lhe razão em maio de 2018. Porquê? Porque a decisão do juiz em restringir a pesquisa nas caixas de correio eletrónicas dos administradores da EDP, além de não ter “qualquer suporte legal”, e de ser completamente “aleatória” e “arbitrária”, constituía uma “verdadeira intromissão na seleção da prova validamente recolhida pelo Ministério Público” e no “objeto de investigação.” E ordenou que Ivo Rosa permitisse a análise de todos os emails da caixa de correio de Mexia e de Manso Neto.

A palavra-chave aqui é “intromissão” porque a lei não permite a Ivo Rosa interferir na investigação que compete ao Ministério Público dirigir.

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Mais tarde, o juiz deu mesmo ordem de destruição dos emails que mencionavam António Mexia e João Manso Neto que tinham sido recolhidos nos autos da Operação Marquês e no caso Universo Espírito Santo — o que não foi concretizado.

No caso da Octapharma, Ivo Rosa voltou a querer destruir prova indiciária, desta vez relacionada com Paulo Lalanda e Castro, o principal arguido do caso da “Máfia do Sangue”. Uma vez mais, a Relação de Lisboa voltou a rejeitar a visão restritiva do juiz de instrução, considerando que a mesma não tinha “apoio legal” e era extemporânea. Só no final do julgamento é que a destruição de provas pode ser avaliada, refere o acórdão da desembargadora Maria do Carmo Ferreira.