A Presidência da República retirou a classificação de “secreto” ao chamado “Relatório das Sevícias”, documento publicado em julho de 1976 já durante o mandato de Ramalho Eanes, mas elaborado por uma comissão criada pelo antecessor Costa Gomes. O relatório denuncia vários abusos cometidos por forças militares e civis entre o 25 de Abril de 1974 e o 25 de Novembro de 1975, que incluem prisões arbitrárias, mandados de captura passados em branco e até tortura de detidos em alguns dos momentos mais tensos desse período. Marcelo Rebelo de Sousa foi surpreendido com o caso, mas foi averiguar o que se passava e entretanto o livro — do qual existem dois exemplares no Arquivo Histórico de Belém — deixou de estar catalogado como secreto no dia 22 de fevereiro.

A discussão pública sobre aquele período foi reativada quando morreu Marcelino da Mata e se recordou que foi alvo de tortura no RALIS (Regimento de Artilharia de Lisboa) às mãos de militantes do MRPP entre os dias 25 e 27 de maio de 1975. Um dos momentos relatados no livro é a prisão de 400 membros do MRPP, a 28 de maio de 1975 como retaliação por detenções e torturas como a que foi alvo Marcelino da Mata.

O debate público estava ao rubro sobre o período pós-revolucionário quando o comentador José Miguel Júdice, no espaço semanal de comentário na SIC Notícias, As Causas, sugeriu aos telespectadores que lessem a obra que tem como nome completo “Relatório da Comissão de Averiguação de violências sobre presos sujeitos às autoridades militares”. Dizia Júdice que, da mesma forma que não se podia esquecer as atrocidades cometidas antes de 1974, também não se devia esquecer as que foram cometidas depois disso.

No dia seguinte a Júdice ter falado pela primeira vez do relatório no programa, um telespectador tentou aceder ao livro a 17 de fevereiro e deparou-se com a seguinte indicação nas “notas técnicas” da catalogação do livro: “SECRETO”. No programa seguinte, a 23 de fevereiro, José Miguel Júdice alertava para a situação, embora desresponsabilizasse Marcelo: “O atual Presidente nada tem a ver com  isso, mas para ele a pergunta: quando deixará de ser “Secreto”? E para quando uma reedição do livro pela Presidência da República?”

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Júdice não tinha como saber, mas precisamente na véspera do segundo programa em que falou no livro, a Presidência da República retirou a classificação de secreto, a 22 de fevereiro. Essa indicação já lá estava pelo menos desde 2017, não se sabendo ao certo desde quando tinha assim sido classificado nem quem era o Presidente no momento dessa anterior classificação.

Houve outras alterações feitas a 22 de fevereiro de 2021. Na “dimensão e suporte”, onde antes estava escrito “1 maço numa caixa”, agora pode ler-se a indicação de que se tratam de 144 páginas em formato de papel. É também acrescentado o nome do produtor (Comissão de Averiguação de Violências sobre Presos Políticos sujeitos às Autoridades Militares. 1976″). Surge ainda um outro novo elemento, que dá conta da “História administrativa/biográfica/familiar” e faz um pequeno enquadramento do relatório: “A Comissão foi nomeada por Resolução do Conselho de Revolução, de 19 de janeiro de 1976 — tomando posse a 26 de janeiro de 1976 — para apurar eventuais abusos exercidos sobre os presos de cariz político, durante os anos de 1974 e 1975 (PREC) e o seu relatório final editado pela INCM”. A mais relevante foi, no entanto, o desaparecimento das “notas técnicas”, onde se apontava o secretismo do relatório.

A última alteração foi feita no dia 22 de fevereiro e retirou a indicação de “secreto”

Que relatório-livro é este e o que relata?

Ainda não tinham passado dois meses do 25 de novembro de 1975 e já havia preocupações do Conselho de Revolução em averiguar os abusos que se passaram no período revolucionário até essa data, incluindo o conturbado “verão quente” de 75. A 19 de janeiro de 1976 o Conselho de Revolução nomeia a Comissão de Averiguação de Violências sobre Presos Políticos sujeitos às Autoridades Militares, a quem o Presidente Francisco Costa Gomes dá posse 7 dias depois.

Como o Observador contou no início do ano, a comissão era composta por quatro militares e quatro civis, um dos civis é o advogado e opositor do regime anterior, Francisco Sousa Tavares, que seria mais tarde deputado (de PS e PSD) e ministro do Governo Bloco Central liderado por Mário Soares. Além de Sousa Tavares, a comissão contava ainda com o juiz António Lourenço Martins, e os advogados Ângelo Almeida Ribeiro (que mais tarde foi Provedor de Justiça) e José Rodrigues Pereira. Os militares eram Henrique Alves Calado (que presidia à comissão), José Júlio Galamba de Castro, Rogério Francisco Tavares Simões e Manuel Sousa Santos.

O relatório investiga vários momentos de tensão como o 28 de Setembro de 1974, o 11 de Março de 1975 (Lisboa, Porto e Beja) ou a tentativa de invasão do comício da Juventude Centrista no São Luiz a 4 de novembro. As prisões do 28 de maio de 975, as prisões nos Açores (de junho de 1975), as prisões em Cabo Verde, a “ocupação e desocupação da Herdade do Roncão — Concelho de Odemira”, havendo também um capítulo sobre “elementos e colaboradores da PIDE/DGS.

Capa do livro que estava classificado como secreto no Arquivo Histórico da Presidência da República

Nas conclusões do relatório é denunciado que foram praticados dois crimes de sequestro “acompanhados de tortura e violenta agressão física, imputáveis a militares e civis”, que houve “centenas de prisões arbitrárias na sequência do 28 de setembro e do 11 de março a 28 de maio de 1975. Algumas das prisões, diz o relatório, foram motivadas apenas por denúncias anónimas, de indicações de partidos ou sindicatos ou simples solicitações verbais, via telefone, de vários gabinetes minesteriais, incluindo do primeiro-ministro.

A maioria das prisões, segundo o relatório, terá sido efetuada pelo COPCON. Houve ainda transferências arbitrárias de Cabo Verde para Lisboa, de 31 pessoas, por motivos ideológicos.

O documento denuncia ainda prisões sem mandados de captura ou mandados de captura assinados em branco. Quando executados esses mandatos, dizem as conclusões do relatório, não eram identificadas as razões da prisão. Noutras vezes, as justificações eram genéricas e vagas como  “suspeita de pertencer a uma associação de malfeitores”, “suspeita de ligação com a reacção”, “sabotagem económica” ou “agitador”. Há ainda registo ainda de casos em que os detidos foram libertados ao fim de meses sem nunca terem sido interrogados.

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Nas mesmas conclusões, o relatório propõe que sejam remetidos documentos às autoridades civis e militares para que pudessem instaurar processos. Isso trazia um problema incómodo para o poder político: a punição  de participantes nos abusos revolucionários antes de se conseguir castigar os antigos membros da PIDE/DGS. A solução encontrada, como contou o Observador em janeiro, foi adiar o problema, sendo definitivamente resolvido com várias leis de amnistia (em 1979, 1981, 1982 e 1986).