Quem desceu a Avenida da Liberdade, em Lisboa, nesta tarde de sábado, foi acompanhado pelo mar vermelho — feito de bandeiras decoradas com foices e martelos — que este fim de semana decora várias das principais cidades do país para comemorar os cem anos do PCP. No Rossio, a meio da tarde já se encontravam centenas de cadeiras distanciadas, preparadas para receber os camaradas para o festejo em tempos de pandemia; no palco, Jerónimo de Sousa recorria à história do partido para deixar recados políticos — e bem atuais — e manter uma distância de segurança em relação ao Governo, garantindo: o PCP continua a não ser uma “força de apoio ao PS”.

Por entre as recordações dos tempos de resistência à ditadura — que colocam o PCP, segundo Jerónimo, no papel de partido que “esteve sempre do lado certo da História” — o secretário-geral do PCP chegou ao presente. Primeiro, para justificar a ‘geringonça’: foi com a “decisiva intervenção” do PCP que se interrompeu a “brutal ofensiva” da direita e se “derrotou o Governo que a conduzia” (o Governo de Pedro Passos Coelho e Paulo Portas), iniciando-se uma fase de “defesa, reposição e conquista de direitos”. Tudo apesar do PS, um partido que “no essencial não mudou”.

Por outro lado, Jerónimo fez questão de dedicar boa parte do seu longo discurso a alertar para os perigos dos atuais projetos das “forças reacionárias e pontas de lança do grande capital” (nos quais inclui PSD, CDS, Iniciativa Liberal e Chega), que querem “subverter a Constituição” e “criar um caldo de cultura social onde fervilha a suspeição generalizada” e se “fomentam medos irracionais, tensões racistas e uma suposta cruzada contra a corrupção que esconde as suas causas e absolve os verdadeiros corruptos”. Para estes, e para quem associa os comunistas a “inimigos das liberdades”, Jerónimo guardava até um recado que não vinha incluído no discurso escrito: “Sim, como é que nos acusam disso, se lutámos 48 anos pelas liberdades?”, atirou, indignado.

Conclusão: “Não somos força de apoio ao PS, nem instrumento ao serviço dos projetos reacionários do PSD, CDS e seus sucedâneos. Somos a força da alternativa patriótica e de esquerda que está na sua concretização”. Essa “alternativa” que é a “grande batalha do tempo presente” não só não dispensa o PCP como convoca, segundo Jerónimo, uma “convergência dos democratas e patriotas” — um discurso semelhante ao que tinha deixado no último congresso do partido, e em que deixava a ideia de que uma alternativa a um bloco de direita, sobretudo que inclua a direita radical, só pode ser construída com o PCP.

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Apesar de ter garantido a distância face ao PS, o dia de aniversário até começou com uma felicitação vinda diretamente do primeiro-ministro. No Twitter, António Costa felicitou o PCP e em particular Jerónimo de Sousa e mostrou-se particularmente satisfeito com “a forma franca” como os dois partidos têm conseguido, nos últimos anos (leia-se nos tempos da geringonça e no primeiro Orçamento pós-geringonça), “encontrar respostas comuns para os problemas do país e os portugueses, no respeito da identidade própria de uma esquerda plural”.

A geringonça e o “ostracismo” dos opositores

No Rossio, o mais de meio milhar de militantes e simpatizantes comunistas — incluindo cem jovens da JCP que desfilaram pelas ruas lisboetas até desembocar naquela praça — ouviam Jerónimo com atenção e tomavam notas. “Isso (a opção de fazer parte da geringonça) não é pacífico nem entre nós…”, comentava com o Observador Eduardo Silva, militante lisboeta de 73 anos e membro da organização do PCP na freguesia de Santa Maria Maior. “Bem vistas as coisas, os avanços acabaram por ser positivos e por desbloquear a situação do país. Mas acho que se se pudesse evitar, seria melhor para nós”.

O militante convicto — inscreveu-se no partido por causa do pai, que “distribuía o jornal do Avante! de carroça, no Alentejo” e foi preso político nas prisões de Peniche e do Aljube — só tinha um lamento: o “ostracismo e preconceito” a que, garante, o partido é votado, sem conseguir que o contacto diário que tem com a população se traduza na hora do voto. Umas filas de cadeiras mais à frente, Luís Rodrigues, militante desde “1975 ou 1976”, mostrava-se mais positivo quanto ao rumo político do partido – “todos os caminhos que contribuam para a melhoria do país devem prosseguir” – mas igualmente indignado com o tratamento mediático do partido: “A comunicação social, no geral, favorece a olhos vistos os opositores do PCP”.

No final do discurso de Jerónimo, muitos avisos: desta vez, dispensou-se a ajuda dos camaradas para arrumar as cadeiras e pediu-se que se fossem embora de forma ordeira e por filas, para evitar aglomerações. Passado poucos minutos, já as centenas de militantes e simpatizantes tinham dispersado — e já a polícia, atenta e presente durante todo o evento, convidava a sair os grupos que ficavam para trás a conviver.