Da gestão da pandemia pelo Governo à guerra colonial, do passado ultramarino aos desafios do país, do passado que nunca se deve “sanear” às “guerras limpas” que não existem, dos lares que “em muitos casos são depósitos de velhos” aos novos “ideológos pseudo-esquerdistas”. Ramalho Eanes esteve esta segunda-feira à noite na TVI e em entrevista falou de quase tudo. Só abriu uma exceção, por institucionalismo, para as palavras e ações dos seus sucessores (como Cavaco Silva), que não comentou. Mas deixou uma nota elogiosa a Marcelo.
O primeiro Presidente da República da democracia portuguesa foi entrevistado pelo comentador político e escritor Miguel Sousa Tavares. E começou por comentar a sua indignação não tanto em torno da polémica sobre a remoção dos brasões da Praça do Império mas mais sobre o problema maior de que essa polémica foi sintoma: aquilo que vê como “desrespeito” de alguma “esquerda festiva” em relação ao passado de Portugal.
A guerra e o Império: “Tendemos a simplificar o que é complexo”
Se ao semanário “Nascer do Sol” Ramalho Eanes dissera que “se não fosse o império, seríamos uma Catalunha”, na TVI aprofundou a sua reflexão sobre as tensões que vê entre parte da esquerda e o passado português: “Entendi naquela altura que estávamos a sanear a nossa história. E a história não se pode sanear“.
A história é a nossa tradição, a nossa personalidade. Temos de a aceitar tal como ela aconteceu e temos de voltar a ela sempre que possível para colhermos lições, vermos o que fizemos mal, porque fizemos mal, quais foram as consequências e o que devemos fazer para corrigir esses erros”, apontou.
O antigo Presidente da República disse não se opor a que se discuta “a história”, a “guerra” (colonial) e “questões que são importantes mas que nesta altura só dividem, como o racismo”. Para essa discussão, porém, talvez seja preciso encontrar um timing melhor, acredita Ramalho Eanes: “Devíamos refletir sobre as questões da guerra do Ultramar e fazê-lo com os países de expressão portuguesa. Numa situação destas [de Covid-19], em que temos de concentrar energias e esforços e mobilizar vontades, não devíamos tratar da guerra. Mas numa situação de paz, proque não?”.
Ramalho Eanes sugere até que se possa “fazer um colóquio” sobre a história da guerra e a colonização portuguesa: “Seria interessante”. E deixou uma bicada, dizendo que “alguns destes ideólogos pseudo-esquerdistas teriam muito de aprender, [aprendendo] a ver como a realidade complexa obriga a uma observação rigorosa, honesta e não a um esquecimento mas a um perdão”.
O antigo Presidente da República de Portugal voltou ainda a fazer uma defesa dos avanços alcançados durante o período das Descobertas portuguesas e da formação do Império colonial, apelando a que se resista a visões maniqueístas e parciais da história. Desde logo, recordou avanços como “o tratado das esferas”, a abertura de “caminho a Galileu e a Newton” ou a “utilização de algarismos árabes”. E perguntou: “Não devemos orgulhar-nos desse percurso, dessa nação?”.
Recordado por Miguel Sousa Tavares de que estivera na guerra, na Guiné, comentou as opiniões e os ênfases divergentes colocados nos “crimes de guerra” cometidos por forças portuguesas no país (e, ficou implícito, por militares como o recém-falecido Marcelino da Mata): “Temos uma tendência perversa para simplificar de forma quase maniqueísta o que é extremamente complexo, como a Guerra Colonial”.
Qual foi a guerra limpa que não teve crimes de guerra? (…) Na nossa guerra houve exageros, mas de um e outro lado. Cometemos muitos exageros, mas também o PAIGC [Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde] cometeu muitos exageros — exageros que eu próprio testemunhei. Os que fazem a guerra compreendem a guerra. Os que a olham de maneira concetual, ideológica, não conseguem ter este realismo para ver o que é a guerra e analisar a guerra em todos os seus seus aspetos. Acho que deviam fazê-lo”, apontou.
A pandemia, o presente, o futuro e um elogio a Marcelo
Para as palavras de Cavaco Silva, antigo Presidente da República — seu sucessor — que disse que a democracia está “amordaçada”, nenhum comentário por respeito institucional aos outros Presidentes. Mas quanto a Marcelo Rebelo de Sousa, “para não o desapontar” (ao entrevistador), deixou um curto comentário ao primeiro mandato que recentemente terminou: “Surpreendeu-me agradavelmente”.
Notando que “os segundos mandatos são sempre diferentes do primeiro” e voltando a defender que um PR tivesse em vez de dois um único “mandato de sete anos, porque lhe dava liberdade absoluta tanto quanto é possível tê-la”, Ramalho Eanes comentou a gestão da pandemia da Covid-19 pelo Governo.
Primeiro, o antigo PR elencou o que considera ser prioritário na resposta executiva a uma pandemia: “É indispensável que o Governo atue com previsão, estratégia e gestão e ponha inteiramente de lado pequenas questões de natureza ideológica. O que importa é conseguir o melhor resultado com o empenhamento de todos”. Depois, deixou a crítica: “Isso não aconteceu de maneira completa e inteira como podia ter acontecido. Houve erros que poderiam ter sido evitados e experiências extremamente interessantes que não foram consideradas”.
Garantindo ainda não estar “dececionado” com o Portugal de hoje, vincando que o país atravessa agora uma “poli-crise” que é “social, económica, sanitária e também de valores”, Ramalho Eanes defendeu que “a uma crise destas só se responde com um desenho de uma estratégia que o povo perceba, em que o povo se empenhe”. E deixou uma pequena lista de encargos: é preciso “considerar a situação económica” e a “fragilidade preocupante das empresas” e é preciso “considerar a pobreza” porque “não é admissível que existam portugueses com fome“.
A poli-crise atual, diz Ramalho Eanes, “é de todos” e “todos temos de nos empenhar para a ultrapassar”. Inclusive os jovens, que têm de se “empenhar” e “bater” de modo a melhorar a sociedade civil a que pertencem. Mas há cidadãos mal-tratados no país, rematou: “Em muitos casos percebemos [com esta pandemia] que os lares afinal eram depósitos de velhos”, o que é “inadmissível num país que entende que todos os cidadãos merecem respeito” e em que “temos todos a obrigação” de garantir a “dignidade” dos idosos.