Um relatório que deveria ter sido discutido internamente, mas não foi. Um relatório que deveria ter sido tornado público, mas não foi — e só o será com uma decisão judicial. O documento tem mais de cinco anos, mas acabou por dominar a primeira audição na comissão parlamentar de inquérito às perdas registadas pelo Novo Banco e imputadas ao Fundo de Resolução.

A autoavaliação independente à atuação do Banco de Portugal no caso do Banco Espírito Santo (BES) foi pedida pelo próprio governador da altura, Carlos Costa. E o seu principal autor, João Costa Pinto, à data presidente da comissão de auditoria do Banco de Portugal, estava convencido que o relatório terminado em abril de 2015 (no ano a seguir à resolução) seria analisado e discutido dentro da instituição para que, no futuro, o supervisor evitasse os erros cometidos no passado.

Costa Pinto ataca vendas do Novo Banco. “Misturar alhos com bugalhos é receita para desastre” e só podia dar perdas

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Mas o então governador não o fez por razões que só o próprio Carlos Costa poderá explicar, afirmou João Costa Pinto aos deputados. Fechou-o a sete chaves e ao fazê-lo acabou por mitificar o relatório.

“Acho que este relatório já devia ter sido tornado público há muito tempo, porque ele acaba por ser mitificado. Acabamos por começar a ver lá coisas que nem estão lá. Mas não é a Bíblia, nem Testamento. É a opinião da comissão”. Por outro lado, “se o Banco de Portugal não reconhecer que errou, nada vai mudar”.

A Comissão de Inquérito vai pedir ao Supremo Tribunal que levante com a urgência o selo de sigilo profissional que o Banco de Portugal de Carlos Costa colocou e que o Banco de Portugal de Mário Centeno (que enquanto ministro defendeu a sua publicação) não retirou. Afinal, como sublinhou Costa Pinto, o Banco de Portugal – como outros bancos centrais – promove uma “cultura de segredo”.

Até lá, perguntas e respostas devem respeitar formalmente esse sigilo, ainda que poucos segredos restem sobre o conteúdo do relatório “secreto” que aponta as falhas do supervisor no caso BES. As conclusões são da comissão que produziu o documento, mas o seu principal autor não poupa outros alvos nas suas opiniões pessoais sobre a resolução do banco, o modelo de venda do Novo Banco e a cedência das autoridades portuguesas à “tecnocracia europeia” do BCE e da Comissão Europeia.

A exposição do BES ao Grupo Espírito Santo e os avisos ignorados

O Banco Espírito Santo o GES eram um grupo construído sobre dívida e com uma estrutura complexa que dificultava o controlo. Segundo Costa Pinto, o relatório dá conta de uma nota interna de 2011 em que os técnicos do Banco de Portugal chamaram a atenção para as dificuldades de acompanhamento do BES/GES devido à extrema complexidade da estrutura e ao facto de a empresa-mãe supervisionada, a Espírito Santo Financial Holdings, ter sede no Luxemburgo. Esta holding podia abrir filiais em paraísos fiscais, fugindo ao controlo do Banco de Portugal.

Mas apesar dos avisos, a comissão liderada por João Costa Pinto nunca encontrou indicações de que esta nota tenha sequer subido ao conselho de administração do Banco de Portugal. “Apesar da importância do assunto, aparentemente não terá tido consequências”. Uma matéria que, na altura, era da responsabilidade do administrador com o pelouro da supervisão, Pedro Duarte Neves, que será ouvido esta sexta-feira.

Desde o ano 2000 que o BES não cumpria de forma sistemática os limites de exposição a partes relacionadas (com o grupo seu acionista). Em 2008, o crédito concedido ao GES era o dobro do permitido e o abate aos fundos próprios determinado pelo supervisor deveria ter resultado em exigências de mais capital por incumprimento de rácios. Mas o banco pediu tempo para resolver e assim foi continuando, mesmo com a troika em Portugal e escapando ao controlo adicional que resultaria se tivesse sido forçado a recorrer ao pacote de 12 mil milhões de euros posto à disposição da banca.

Atuação mais enérgica da supervisão teria reduzido perdas

O Banco de Portugal deveria ter tido uma atuação mais enérgica, sabendo que os problemas eram estruturais. Apatia e complacência, foram palavras usadas para descrever a atuação do supervisor, ilustrada por vários episódios de respostas/medidas que demoraram meses e até anos a serem tomadas. A comissão independente concluiu que “em momentos distintos, uma atuação mais enérgica poderia ter evitado ou minimizado problemas” e, desta forma, reduzido as perdas que viriam a surgir com a resolução.

E se o Banco de Portugal é o grande visado nesta avaliação, ficam dúvidas sobre a atuação de outros supervisores, como a Comissão de Mercado de Valores Mobiliários. No mínimo, houve falta de coordenação na fiscalização aos esquemas que permitiram ao BES/GES contornar imposições regulatórias e continuar a financiar-se junto dos clientes do banco, vendendo papel comercial de empresas que estavam tecnicamente falidas. O aumento de capital realizado em junho de 2014, um mês antes da resolução, foi também apontado como uma operação da qual os investidores de retalho deviam ter sido afastados.

Banco de Portugal tinha poderes legais para remover Salgado

O Banco de Portugal tinha poderes para afastar Ricardo Salgado. Para Costa Pinto, o Banco de Portugal tinha já à data instrumentos legais — no quadro do regime geral das instituições de crédito — que lhe permitiam remover a gestão de Ricardo Salgado, em particular quando se tornou evidente que não estava a ser cumprida o cordão sanitário (ring-fencing) imposto entre o banco e o GES. Uma opinião que contrasta claramente com a posição assumida sempre por Carlos Costa quando questionado sobre o tema.

Exposição ao BESA era conhecida, mas Banco de Portugal confiou nos auditores e na supervisão angolana

A supervisão conhecia a elevada exposição do Grupo BES a Angola, estava nas contas. Mas a decisão de equipar a regulação angolana à nacional e o facto de o BESA sempre ter apresentado lucros e dos auditores nunca terem colocado reservas às contas, foram fatores que levaram a que a exposição a Angola “nunca tenha sido uma preocupação da supervisão” em Portugal. O relatório revela que o BdP inquirições ao Banco Nacional de Angola pedindo a opinião do supervisor angolano sobre a qualidade do crédito do BESA e sobre a robustez do BESA. “E as respostas foram sempre no sentido de considerar que o BESA era um banco sólido”.

Mas isso não quer dizer que a supervisão não devesse ter-se preocupado com a exposição do BES ao BES, defende, considerando que o supervisor fez mal em não ter atuado”. Tanto mais, quando acabou por não aceitar a garantia dada pelo Estado angolano.

Costa Pinto confirma que a auditora KPMG Angola chegou a emitir reservas às contas do banco em Angola quando, na sequência da saída de Álvaro Sobrinho da presidência do BESA, se percebeu que havia cinco mil milhões de dólares em créditos a sociedades cujo beneficiário último não era conhecido. Essas reservas foram comunicadas ao Banco de Portugal, mas não tiveram reflexos nas contas consolidadas do BES. E só poucos dias antes de ser noticiado o buraco de cinco mil milhões de dólares (já na antecâmara da resolução) é que o BdP  terá percebido a dimensão do problema.

A resolução de 2014, o “exercício inventado pelos tecnocratas europeus”

Para João Costa Pinto, a solução não deveria ter passado pela resolução de um banco sistémico com a dimensão do BES, e ainda para mais com uma administração que não conhecia bem os ativos. “Não era tecnicamente possível de fazer e que tinha riscos terríveis”, afirmou. O responsável destacou a elevada complexidade técnica de um “exercício inventado por aquela gente da Europa”, diz que o maior erro das autoridades portuguesas foi terem “cedido tudo à tecnocracia europeia” que estava com uma enorme vontade de aplicar o novo modelo. “O BES foi uma experimentação de laboratório que não foi repetida. Mais ninguém o fez” [num banco com aquela envergadura].

João Costa Pinto diz que o BES foi uma experimentação dos tecnocratas europeus que não voltou a ser repetida

Para o ex-presidente da comissão de auditoria do BES, há também responsabilidades do poder político. Uma intervenção mais “enérgica” teria de ter uma componente política e teria de ser acompanhada por um programa que garantisse a estabilidade financeira, não era apenas uma decisão técnica. Mas na altura, na saída do resgate da troika, muita gente foi contra a atribuição de dinheiros públicos para apoiar empresários e investidores. (O então primeiro-ministro Pedro Passos Coelho foi um deles). “Era preciso dar garantias e quem podia garantir era o poder político.” Ainda que, “isso não isente o Banco de Portugal das suas responsabilidades”.

Vendas aceleradas “que misturam alhos e bugalhos” do Novo Banco só podem dar perdas

As vendas “on fire” do Novo Banco. Não foi só atuação do Banco de Portugal no processo do BES poderia ter evitado algumas das perdas da resolução, mas também das que surgiram na sequência do processo de venda do Novo Banco à Lone Star. Ainda que criação de um mecanismo de compensação de perdas do comprador seja normal, a dimensão da garantia pública (do Fundo de Resolução) dada no valor de 4.000 milhões de euros é “excecional”. Por outro lado, a recuperação de créditos duvidosos (protegidos por essa garantia) é uma tarefa permanente de acompanhamento dos devedores e colaterais. Mas não foi isso que o Novo Banco fez.

Quando se passa para a ótica de “fire sale” (venda acelerada ou forçada), as perdas no valor são imediatas. E então quando se misturam em pacote alhos e bugalhos (ativos bons e maus), é receita para o desastre”. Deste cocktail fazem ainda parte fundos compradores dos ativos que querem recuperar o investimento em pouco tempo, isso implica vender os ativos com uma desvalorização de 50%, e uma mistura de créditos com garantia pública e outros sem garantia. “Quando tudo isto acontece, não podia haver coisa se não perdas substanciais.

E podia ter sido evitado? Mais uma vez Costa Pinto remete para a cedência das autoridades portuguesas a compromissos com o BCE e da DG. Comp (concorrência europeia) que “nunca deveriam ter sido aceites como foram. Com mais tempo para recuperar os créditos — invocando a ajuda dada aos bancos ingleses Lloyds — e a sua gestão profissional feita por um veículo independente do Novo Banco, o resultado teria sido melhor. Reconhece que essa autonomização dos ativos problemáticos não aconteceu porque ia exigir mais capital para compensar o banco. Mas teria sido mais transparente.