A atual chefe de gabinete de João Galamba, secretário de Estado da Energia, tentou obter emprego na EDP — Gestão da Produção de Energia, SA, após a cessação das funções que tinha no Governo Sócrates. Maria Eugénia Cabaço apresentou uma candidatura espontânea a 1 de julho de 2011 e enviou o seu currículo para um administrador da EDP “na expetativa de que o mesmo possa corresponder às necessidades da empresa que V.Exa. dirige”.
Vários emails trocados entre António Mexia e um administrador daquela empresa do Grupo EDP indiciam que Dulce Pássaro, ex-ministra do Ambiente, e Orlando Borges, atual presidente da Entidade Reguladora dos Serviços de Água e Resíduos (ERSAR) e então presidente do Instituto da Água, tentaram alegadamente colocar uma ‘cunha’ para que Maria Eugénia Cabaço fosse contratada pela principal elétrica nacional — mas tal não veio a acontecer.
Ao Observador, Dulce Pássaro e António Mexia negam que tenham falado sobre a possível contratação de Eugénia Cabaço. Orlando Borges, com quem Cabaço trabalhou na ERSAR entre 2017 e 2019, não respondeu às perguntas escritas do Observador apesar de vários emails enviados para diversos endereços eletrónicos da ERSAR. A atual chefe de gabinete de João Galamba nega que tenha pedido tais diligências a Pássaro e Borges e afirma: “Ainda que as tivesse solicitado, que não solicitei, não as consideraria um favorecimento, pois não é, certamente, após a cessação de funções de um Governo que algum suposto favorecimento poderia ser compensado”.
Os emails foram apreendidos pelo Ministério Público e fazem parte dos autos do caso EDP, onde o Observador os consultou, mas a situação não tem relevância criminal.
Os emails
Tudo começou a 1 de julho de 2011. José Sócrates tinha cessado funções a 21 de junho e muitos ex-membros de gabinetes do Executivo do PS estavam em busca de trabalho. Maria Eugénia Cabaço era um deles e, no âmbito dessa busca, enviou um email com o seu currículo para António Ferreira Costa, um experiente administrador da EDP — Gestão da Produção de Energia, SA.
“Tendo cessado em 20 de junho funções como chefe de gabinete da secretaria de Estado do Ordenamento do Território e das Cidades, venho trazer ao conhecimento de V.Exa. o meu curriculum vitae na expetativa de que o mesmo possa corresponder às necessidades da empresa que V.Exa. dirige”, lê-se na missiva que foi apreendida pelo Ministério Público e que faz parte dos autos do caso EDP.
Eugénia Cabaço confirmou ao Observador o envio do seu currículo para o gestor da EDP, explicando que tal aconteceu “espontaneamente” por na altura procurar trabalho, mas nega qualquer conflito de interesses ou incompatibilidade entre as funções que tinha na Secretaria de Estado do Ordenamento do Território e das Cidades e o interesse em entrar na EDP. “Em abstrato, não há qualquer ponto de contacto entre as funções de chefe do gabinete na área do ordenamento do território e das cidades e a atividade de um gabinete jurídico de uma empresa de produção de energia”, lê-se nas respostas enviadas.
Certo é que a secretária de Estado Fernanda Carmo, da qual Eugénia Cabaço foi chefe de gabinete, tinha competências delegadas da ministra do Ambiente com interferência direta no negócio da EDP — Gestão da Produção de Energia, SA, (precisamente a empresa à qual Cabaço espontaneamente se candidatou).
Entre essas competências estavam, por exemplo, a declaração de utilidade pública para a expropriação de bens imóveis ou móveis com o fim de se construírem infra-estruturas hidroelétricas ou de outra natureza. Tal como o atesta o despacho 8672/2011 da secretária de Estado Fernanda Carmo assinado a 17 de junho de 2011 — precisamente 14 dias antes de Eugénia Cabaço enviar o email a António Ferreira Costa a candidatar-se a um emprego na EDP — e publicado em Diário da República a 28 de junho de 2011.
Dois dias depois de Eugénia Cabaço ter enviado o seu email, António Ferreira Costa informa António Mexia, o então todo-poderoso presidente executivo da EDP, de que “tinha sido contactado pelo presidente do INAG [então Orlando Borges], a pedido da ex-ministra do Ambiente [Dulce Pássaro — Sócrates], para recebermos o CV da ex-chefe de gabinete da secretária de Estado do Ordenamento do Território [Maria Eugénia Cabaço] que exerceu funções de assessoria jurídica em vários gabinete do Governo. A sra. ex-ministra do Ambiente, ao que me foi dito, poderá contactar-te”, lê-se no email enviado por Ferreira Costa.
O então administrador da EDP – Gestão da Produção de Energia, SA sugere a Mexia que “este assunto poderá ter seguimento na sua análise pela Teresa Pereira” [então responsável na EDP com o pelouro dos recursos humanos e hoje líder da EDP Global Solutions], perguntando: “Procedo ao envio do CV”. Ao que António Meixa responde: “Ok”.
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Questionado pelo Observador sobre se se recorda de ter recebido o currículo de Eugénia Cabaço em julho de 2011, António Mexia diz não ter memória (“não faço a mínima ideia”) e nega que tenha falado com Dulce Pássaro sobre esse tema.
O mesmo diz a ex-ministra do Ambiente. Afirmando desconhecer “por completo o conteúdo dos dois mails que refere”, Pássaro garante: “Desde a minha saída do Governo, em Junho de 2011, não tive qualquer contacto com o dr. António Mexia ou com outros dirigentes ou colaboradores da EDP”.
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Maria Eugénia Cabaço respondeu às nove perguntas enviadas por escrito pelo Observador. Questionada sobre se exclui a hipótese de vir a trabalhar para o Grupo EDP após cessar as suas atuais funções de chefe de gabinete do secretário de Estado da Energia, Cabaço esclareceu que entende que o “regime jurídico a que estão sujeitos os gabinetes dos membros do Governo, respetivos impedimentos e incompatibilidades, não contém qualquer proibição que constituísse obstáculo ao meu recrutamento pela EDP.”
Contudo, faz questão de informar que “que dez anos volvidos” após a sua candidatura espontânea “já não equaciona a hipótese de integrar o departamento jurídico da EDP.”
A atual chefe de gabinete de João Galamba começou por esclarecer que “o envio do curriculum vitae constitui uma diligência comum a todas, ou a quase todas as pessoas, que procuram trabalho”. Questionada sobre se teve, antes do envio do currículo, algum conhecimento de abertura de alguma vaga na estrutura da EDP, Cabaço afirmou que, “como é sabido, o envio de um CV não depende de prévio anúncio de recrutamento e destina-se, como foi o caso, a levar ao conhecimento de potenciais empregadores o interesse e a disponibilidade para eventual prestação de trabalho”.
“O direito ao trabalho é, segundo sei, uma prerrogativa de todos os cidadãos, que a Constituição da República Portuguesa não veda às pessoas que tenham prestado serviço em gabinetes ministeriais”, lê-se na sua resposta. “A EDP nunca me comunicou o seu interesse ou desinteresse no curriculum vitae enviado”, acrescenta.
“Nunca estive com o eng.º Ferreira da Costa [administrador da EDP a quem enviou o CV] e não o conheço pessoalmente. Na minha busca de trabalho, em virtude do final das funções que vinha desempenhando, foi-me fornecido o seu endereço de correio eletrónico para que pudesse enviar o meu curriculum vitae a fim do mesmo ser internamente reencaminhado para o departamento de recursos humanos da empresa”, explica, sem adiantar quem lhe indicou o email de Ferreira da Costa.
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Questionada sobre se tinha algum conhecimento técnico que lhe permitia aceder a uma posição na EDP – Gestão de Produção de Energia — uma empresa que se dedica à promoção de empreendimentos de produção e venda de energia —, Eugénia Cabaço, licenciada em Direito e com inscrição na Ordem dos Advogados, responde: “O Direito é transversal a muitas atividades, permito-me dizer mesmo a quase todas as atividades, e, nessa medida, sou tecnicamente habilitada a desempenhar um vasto leque de funções, incluindo, como é evidente, funções no departamento jurídico desta ou de qualquer outra empresa ou entidade”.
Cabaço destaca ainda “a diversidade de áreas” nas quais trabalhou, lê-se na sua resposta. De acordo com o seu currículo, publicado em Diário da República, Eugénia Cabaço, 53 anos, tem uma carreira profissional construída no sector público e essencialmente à base de cargos em gabinetes de Governos do PS. Depois de ter sido docente da Faculdade de Direito de 1991 a 1994, foi assessora de vários gabinetes no Governo Guterres e assessora do primeiro-ministro José Sócrates entre maio de 2005 e outubro de 2009. No segundo Governo Sócrates passou para chefe de gabinete de Fernanda Carmo como secretária de Estado do Ordenamento do Território e das Cidades.
Já no Governo de António Costa foi adjunta do ministro das Finanças Mário Centeno entre dezembro de 2015 e fevereiro de 2017, tendo passado para a assessoria do Conselho de Administração da Entidade Reguladora dos Serviços de Águas e Resíduos liderado por Orlando Borges — que em 2011 terá alegadamente tentado colocar a ‘cunha’ na EDP.
Fora dos gabinetes governamentais, Eugénia Cabaço foi jurista na Caixa Geral de Depósitos em dois períodos (que correspondem aos governos do PSD/CDS de Durão Barroso/Santana Lopes e de Passos Coelho): 15 de fevereiro de 2002 a 5 de maio de 2005 e de 1 de setembro de 2011 a 31 de março de 2015.
Eugénia Cabaço refuta, assim, que o seu caso possa ser contextualizado como fazendo parte do conceito de ‘portas giratórias pois o seu currículo “conta com o desempenho de funções em oito gabinetes governamentais e zero – repete-se: zero – nomeações para estruturas da administração pública ou para o setor empresarial do Estado.”
Questionada sobre se informou o secretário de Estado João Galamba da sua candidatura espontânea à EDP, a jurista respondeu: “O senhor Secretário de Estado Adjunto e da Energia foi, por mim, informado de todas as funções que desempenhei e não foi, como obviamente não tinha de ser, por mim informado de todas as remessas que fiz do meu curriculum vitae na procura de trabalho ao longo da minha vida”.
O Observador perguntou, por último, se sente condições para exercer o cargo com independência e imparcialidade face ao Grupo EDP. “A pergunta em referência (…) desvaloriza o facto de as funções que desempenho serem as de chefe de gabinete de um membro do Governo e não das do próprio membro do Governo”, lê-se na resposta. Enfatizando que sempre exerceu os seus cargos com “rigor e isenção”, não podendo tal ser “questionável pelo facto de comprovadamente procurar trabalho depois de ter cessado o XVIII Governo Constitucional em 2011”, e pelo “facto de não ter ter sido recrutada pela EDP”, Eugénia Cabaço assegura que nunca “teria qualquer intuito de prejudicar a empresa em causa.”