O primeiro-ministro de Cabo Verde reconheceu esta segunda-feira, em entrevista à Lusa, que Portugal tem sido um “parceiro” de “primeira linha” e desde a “primeira hora” no combate à pandemia, e pede uma decisão sobre a reestruturação da dívida. “Portugal tem sido um parceiro de primeira linha e primeira hora, relativamente a este combate à covid-19. Desde logo o apoio na realização dos testes [PCR], quando nós estávamos numa fase em que não tínhamos ainda os laboratórios, mesmo em situações de acumulação de testes tivemos que enviar as amostras para o Instituto Ricardo Jorge, que deu um grande apoio”, reconheceu Ulisses Correia e Silva.
No âmbito da pandemia, o apoio português envolveu ainda o equipamento para a instalação de um laboratório na ilha do Fogo, para analisar amostras em testes PCR à Covid-19, a entrega de milhares de equipamentos de proteção individual, a prevista doação de 5% das vacinas a adquirir por Portugal – tal como aos restantes países de língua portuguesa em África e Timor-Leste -, e mais recentemente a entrega de 40 mil testes, suficiente para cerca de dois meses de testagem à doença, ao ritmo atual em Cabo Verde. “Todo esse apoio tem sido muito relevante para o bom combate que temos estado a dar à covid-19”, admitiu o primeiro-ministro.
Contudo, a maior preocupação do governo cabo-verdiano prende-se com a dívida de cerca de 200 milhões de euros a Portugal, essencialmente gerada pelo programa habitacional do Estado “Casa para todos”, que transitou do governo anterior e que deveria começar a ser paga a partir deste ano. “Nós temos esse processo ainda em aberto, que precisa de ser encerrado. Lembro-me na comissão mista que tivemos em Lisboa, com António Costa [primeiro-ministro de Portugal], mas antes disso, em 2017, aqui em Cabo Verde, a questão da dívida foi colocada relativamente ao programa ‘Casa para todos’, tendo em conta a dimensão do programa, os seus impactos, que foram um bocado gravosos, relativamente à parte comercial, ver como negociar o perdão ou o reescalonamento da dívida, tendo em conta que se começa a vencer em 2021, portanto este ano”, recordou. “Estamos à espera para fechar este dossiê com o Governo português”, apontou.
Já em 2019, Ulisses Correia e Silva tinha admitido no parlamento que aquele programa habitacional, financiado com uma linha de crédito de 200 milhões de euros de Portugal, lançada pelo Partido Africano da Independência de Cabo Verde (PAICV, desde 2016 na oposição), tem sido “um grande problema” que o governo estava a resolver. Questionado pela Lusa, o chefe do governo admitiu que ainda não há um desenlace para esta reestruturação da dívida, mas acredita num desfecho positivo para Cabo Verde. “Acredito, até porque há uma vontade, e houve uma vontade política por parte do primeiro-ministro. O processo depois seguiu para o Ministério das Finanças, esperamos que haja um encerramento deste dossiê da melhor forma e ver que instrumentos, se será reescalonamento, reestruturação ou perdão de uma parte da dívida”, disse.
O governo cabo-verdiano assinou em 29 de janeiro de 2010, com Portugal, um acordo de financiamento de 200 milhões de euros para a construção de 8.500 casas de Habitação de Interesse Social (HIS), que previa uma comparticipação pelo Estado de Cabo Verde de 20 milhões de euros, correspondente a 10% do valor total deste projeto, conhecido como “Casa para todos”.
No relatório e contas de 2019 da imobiliária estatal cabo-verdiana IFH, é recordado que o número de habitações a serem construídas ao abrigo desse financiamento “foi depois ajustado para 6.010”, pela necessidade de construção de mais equipamentos e infraestruturas e de compras de alguns terrenos em locais onde o Estado, aquela empresa pública ou as câmaras municipais não tinham terrenos disponíveis. No projeto inicial, aquela imobiliária devia prestar vários serviços ao Estado, no âmbito deste contrato, contudo, “no desenvolvimento da sua implementação”, o governo cabo-verdiano, em 15 de julho de 2013, “fez a retrocessão do programa de habitação referente ao financiamento obtido junto de Portugal para a IFH, passando a empresa a ser detentora dos ativos e passivos daí resultante”, assumindo ainda os 10% da comparticipação nacional do projeto. No relatório e contas da IFH, a imobiliária refere que o saldo desse empréstimo, em 31 de dezembro de 2019, ascendia a quase 9.454 milhões de escudos (85 milhões de euros). Findo o período de carência de 10 anos, o capital utilizado será reembolsado, em prestações semestrais iguais e consecutivas, durante 20 anos, vencendo juros à taxa anual de 1,71%, recorda a IFH, sobre o financiamento de Portugal.
Cabo Verde com recessão histórica de 14% em 2020, prevê o primeiro-ministro
A economia cabo-verdiana registou uma recessão económica histórica de 14% em 2020, devido à pandemia, segundo previsão avançada em entrevista à Lusa pelo primeiro-ministro, que não descarta a necessidade de um Orçamento Retificativo este ano. “Ainda temos as estimativas, que estão a apontar para uma recessão 14% [do PIB], o que é muito para um país que fechou 2019 com 5,7% de crescimento. Mas isso demonstra o real impacto e intensidade da covid-19″, começou por explicar Ulisses Correia e Silva.
A estimativa de outubro passado do Banco de Cabo Verde (BCV) apontava para, no cenário base, uma recessão de 8,1%, que podia chegar aos 10,9% no cenário mais adverso, enquanto as previsões anteriores do governo colocavam a recessão, após quatro anos consecutivos de crescimento económico de cerca de 5% (anuais), entre 6,8% e 8,5%.
Questionado pela Lusa nesta entrevista, Ulisses Correia e Silva justificou que esse desempenho económico teve impacto sobretudo da quebra na procura turística, devido às restrições impostas pela pandemia, afetando um setor que representa cerca de 25% do Produto Interno Bruto (PIB) cabo-verdiano e que tinha registado em 2019 um recorde de 819 mil turistas. “Nós vamos ter uma perda de turismo em cerca de 72%, comparando 2020 com 2019, são cerca de 600 mil turistas a menos, isso impacta sobre tudo. Sobre o emprego, sobre as receitas fiscais, além das consequências que temos tido relativamente ao próprio tecido empresarial e às dinâmicas necessárias que o Governo implementou para as proteções [de empresas e trabalhadores, devido aos efeitos da Covid-19]”, explicou.
Depois de em 2020 o governo ter tido a necessidade de aprovar, em julho, um Orçamento Retificativo para acomodar os aumentos com os apoios sociais e cuidados de saúde, para lidar com a pandemia – com a taxa de desemprego a duplicar, para quase 20% -, Ulisses Correia e Silva admitiu a repetição desse cenário este ano, tendo em conta a retoma mais lenta do que era previsto da procura turística por Cabo Verde, devido às novas vagas da pandemia que afetam os países emissores de turistas para o arquipélago, sobretudo da Europa. “Poderá vir a ser [necessário, um Orçamento Retificativo]. Repare, esta pandemia coloca quase todos os países a fazer navegação à vista, relativamente às consequências, às medidas de proteção, aos ajustamentos. Não digo que não seja necessário, vamos ver quando chegar o momento, para podermos ter o real impacto, pelo menos no primeiro semestre deste ano, se haverá necessidades ou não de fazer ajustamentos”, reconheceu.
O primeiro caso de Covid-19 no arquipélago foi diagnosticado em 19 de março de 2020, precisamente quando o país suspendeu todos os voos comerciais internacionais, imediatamente antes da declaração, pela primeira vez, do estado de emergência, para conter a transmissão. Quatro dias depois, seguiu-se a primeira morte provocada pela Covid-19, um turista inglês de 62 anos, que tinha sido também o primeiro caso oficial da doença no país, dos cerca de 16 mil confirmados desde então. Ulisses Correia e Silva reconhece agora, um ano depois, que esse foi o período de maior tensão que viveu na liderança do país (desde 2016), quando Cabo Verde registou “os primeiros casos” de uma doença então ainda nova.
Isso é curioso porque nós estávamos a tentar retardar ao máximo a entrada da covid-19 em Cabo Verde, tomámos as medidas. Mas foi o momento mais stressante para todos, porque a cada caso íamos seguindo, vem um caso seguinte, vem um caso seguinte, eu sabia que as pessoas lá em casa também contavam”, recordou.
Com o aumento crescente de casos diários, e após um confinamento geral que se prolongou, diferenciado por ilhas, de abril a maio, surgiu a adaptação à nova realidade. “Depois, quando atinge um determinado volume de casos que iam acontecendo deixou de haver essa contabilidade diária, essa pressão de contar mais um caso que aparece. E, acumulando, começou a estar ao nível daquilo que seriam as consequências da covid-19. Portanto, é o momento do impacto inicial e das medidas que tivemos que tomar – depois o estado de emergência, a primeira experiência para um país como Cabo Verde -, com todo o confinamento e as consequências desse confinamento. Foi de facto um momento muito impactante“, reconheceu.
Paulo Julião (Texto), da agência Lusa