O governador do Banco de Portugal avisou esta terça-feira, na véspera de ser votada uma proposta do PCP para prolongar as moratórias bancárias, que “não está, neste momento, colocada a hipótese de a Autoridade Bancária Europeia (EBA) prolongar o enquadramento” transitório que foi criado, a nível europeu, para permitir que os bancos não considerassem os créditos em moratória como créditos em incumprimento ou em reestruturação. Como nada leva a crer que esse enquadramento vá ser prolongado, não é desejável, considera Mário Centeno, que Portugal queira avançar com uma iniciativa que deixe o país “isolado” no contexto europeu e que, na realidade, vá originar uma “armadilha” para famílias e empresas – já que pode haver uma “marcação massiva” de créditos como problemáticos e, por essa razão, colocar em risco o acesso futuro destes clientes a serviços bancários.
Esta foi a mensagem que Mário Centeno procurou passar, de forma reiterada, na audição parlamentar esta terça-feira na Assembleia da República (pedida pelo Bloco de Esquerda). O governador do Banco de Portugal sustentou que “Portugal encontrou nas moratórias um papel importante na resposta à crise de liquidez – e elas têm desempenhado um papel nas dimensões pública e privadas (APB, ASFAC)”. Todas as moratórias, diz Centeno, “têm todas o mesmo enquadramento regulamentar e que é sustentado nas orientações da EBA” – e Portugal está no top europeu dos países que recorreram a moratórias bancárias.
Para Mário Centeno, isso pode ser um reflexo das “condições de acesso para empresas e famílias, que eram muito claras e eram, no caso português, bastante abrangentes – isso pode ser uma explicação possível para que Portugal tenha dos valores mais elevados da utilização das moratórias”. Aliás, referiu o responsável, em Portugal não houve limitação de setores que podiam aceder às moratórias nem elas foram limitadas a pequenas e médias empresas – há cerca de 10% de moratórias em empresas maiores.
Da esquerda à direita, Centeno foi atacado por transmitir o que alguns deputados consideraram ser uma visão distorcida da realidade. Se Centeno acha que houve muitas moratórias porque os critérios de acesso eram fáceis, Cecília Meireles, do CDS-PP, contrapôs que talvez haja “muitas moratórias em Portugal porque foi muito difícil recorrer a outros mecanismos que não as moratórias”, ou seja, as pessoas e famílias “recorreram às moratórias porque não tinham mais nada”.
Não podemos correr o risco de ficar para trás quando o resto dos países europeus já está a adaptar-se a viver num conjunto de medidas que são posteriores, um cenário posterior à crise económica”, disse Mário Centeno.
O PSD foi mais longe no ataque ao Governo. Para os sociais-democratas, as moratórias bancárias têm atenuado um problema maior: a falta de medidas concretas de apoio aos portugueses. E agora, que estão a acabar? “A resposta do Governo aos portugueses na questão das moratórias é: ‘Paciência, é da vida!’”, ironizou o deputado Carlos Silva.
Na esquerda, o PCP indicou que quer moratórias prolongadas mais seis meses – “e pode não ser suficiente” – e sublinhou que a verdadeira “armadilha”, na sua opinião, é a própria pertença à EBA, que deixa o país “sem opções” para proteger os seus cidadãos e as suas empresas numa crise tão difícil. Já o Bloco de Esquerda sustentou que “a economia, o tecido empresarial, o emprego e a vida de muitas pessoas estão a ser segurados pelos fios das moratórias”. E não deixou de dar uma bicada ao assunto do momento: “isto num país onde os apoios são insuficientes e o governo faz guerrilha contra alguns apoios sociais”. Por outro lado, Mariana Mortágua salientou que um quinto das moratórias a particulares – 3,7 mil milhões – são da moratória privada (da APB) e, portanto, terminam por estes dias, o que pode ser um “desastre” em potência.
Um em cada três euros em crédito a empresas está sob moratória, diz Banco de Portugal
Com o PS a perguntar que medidas os bancos estão a tomar para prevenir “um aumento significativo do crédito malparado” e o PSD a temer que, com o fim das moratórias, a economia portuguesa vá dos “cuidados intensivos” para “um estado de coma”, Centeno sublinhou que “durante o ano de 2020, o setor bancário aumentou as imparidades em dois mil milhões de euros, mais 44% do que em 2019, e essa foi a primeira resposta que os bancos deram na preparação para eventos de incumprimento que possam surgir”.
Criticando “adjetivações” demasiado sensacionalistas ou exageradas sobre o perigo das moratórias, Mário Centeno lembrou que “a moratória da ASFAC, que já terminou, não gerou níveis significativos de incumprimento“. E trata-se, aqui, de crédito ao consumo [onde tende a haver mais incumprimento do que no crédito à habitação] – não houve nenhuma dificuldade em tratar eventuais incumprimento no quadro normal da atividade destas empresas, indicou o governador do Banco de Portugal.
Não estou a dizer que não temos de preocupar, muito pelo contrário, estamos ainda em plena pandemia, temos de observar os próximos meses e tomar decisões como temos feito até aqui”, diz Centeno, sublinhando que as medidas que foram tomadas para responder a uma crise que resultou do fecho compulsório da atividade económica.
O que devem fazer os bancos? “Têm de olhar para a classificação dos créditos, tem de procurar que os bancos encontrem soluções para as situações específicas dos devedores, separando empresas viáveis de inviáveis”, diz Centeno. Tem de haver uma “negociação tem de ser bilateral, para uma reestruturação de crédito que tem de ser vista em ligação direta com os clientes”. “Devemos exigir aos bancos que estabeleçam aquilo que é esperado. Eles não têm apenas a função de conceder crédito, devem acompanhar e gerir o crédito com os seus clientes – devemos olhar para estas questões com realismo, vendo os riscos, vendo a evolução que temos tido e tomar decisões compatíveis com esta realidade”, concluiu.
Centeno. Após 15 de março os indicadores económicos já recuperaram face ao período anterior
A audição de Mário Centeno deixou um travo a desilusão em vários grupos parlamentares. Com um PS pouco aguerrido (nem se esboçou qualquer defesa ao governador que foi ministro das Finanças de António Costa até meados do ano passado), na oposição – especialmente no PSD, PCP, Bloco de Esquerda e CDS-PP – os deputados acusaram o governador de ser “pouco claro”.
Carlos Silva, do PSD, disse que saiu do debate ainda “mais preocupado”, porque nesta audição “não foram descortinados planos concretos” sobre como se vai lidar com este “tsunami” de crédito em moratória. Mariana Mortágua insistiu: “O sr. Governador atirou para aqui centenas de dados e foi muito pouco claro sobre aquilo que pretende fazer”, acusou a deputada do BE, dizendo que Centeno deu a entender que Portugal não precisa de moratórias – embora não o dizendo – e esquecendo que, embora haja muita gente que não perdeu rendimentos, houve uma “parte não negligenciável” da população que pode cair na pobreza.
O CDS juntou-se ao protesto. Cecília Meireles apelou ao Governador do Banco de Portugal para que “fale claro” nesta matéria, porque há muitas pessoas que estão nesta situação e não é bom criar-lhes “falsas expectativas”. Referindo-se ao fim gradual das diferentes moratórias, nos próximos meses, “é importante nós percebermos se há alguma coisa pensada para isto”. Se não estiver nada pensado “é grave”, completou.