Mais um capítulo na já longa e turbulenta novela dos apoios sociais. Apenas dois dias separaram duas promulgações presidenciais sobre o mesmo decreto-lei, que estabelece mecanismos de apoio no âmbito do estado de emergência, e o cruzamento das duas acabou por deixar em branco o espaço onde antes estavam apoios aprovados pelo Governo para os trabalhadores independentes da cultura e do turismo. Mas os apoios vão manter-se, garante o Governo e também o Bloco de Esquerda que alega não existir sequer “incompatibilidade” entre os dois.

A informação tinha sido avançada na edição desta terça-feira pelo Jornal de Negócios, e confirmada pelo Observador junto de fontes do BE e do Governo, que explicam que isto não vai implicar o desaparecimento dos referidos apoios. A primeira mexida no decreto-lei, no dia 26 de março, ditou alterações do Governo que introduziram a extensão de apoios para os trabalhadores independentes da cultura e do turismo. A segunda, no dia 28 de março, introduziu as alterações do Parlamento que alargam apoios a trabalhadores independentes, gerentes e empresários em nome individual. Os apoios do Governo foram aprovados a meio de março, altura em que o Parlamento já tinha votado e aprovado as suas alterações, mas o primeiro a ser promulgado foi o do Governo, que no artigo 3º incluía dois números que eram aqueles onde consagrava, precisamente, os apoios aos trabalhadores independentes de dois do setores mais afetados pela crise.

Ora, na redação do diploma que saiu do Parlamento e que foi promulgado depois, estes apoios não estão. Apesar de já promulgados, tinham sido aprovados já depois dos que formaram uma coligação negativa para o Governo no Parlamento, pelo que ainda não constavam na redação que seguiu para Belém.

Assim, o Presidente da República acabou por promulgar duas versões diferentes do mesmo decreto, com alíneas que não batem certo: o mesmo artigo 3º tem uma versão com apoios à cultura e turismo, que pode confirmar aqui, e outra sem esses mesmo apoios, que pode consultar aqui.

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A própria ministra do Trabalho e da Segurança Social, Ana Mendes Godinho, já tinha dado esta pista na segunda-feira à noite, numa entrevista na SIC-Notícias, ao dizer que “a sucessão de normas” durante o mês de março fez com que “até na republicação” surjam “problemas” porque “desaparecem alargamentos ao turismo e cultura”. “Tem de haver gestão coordenada destes apoios”, concluía a ministra para criticar que o Parlamento tivesse avançado com alterações a um diploma que estava a ser alterado pelo Governo.

Mas a questão não é irrevogável. É isso mesmo que é garantido ao Observador quer da parte do Governo, quer da parte do Parlamento. Ou seja, os apoios não foram apagados intencionalmente, estando ambos dispostos a resolver a questão numa redação nova que inclua os apoios inadvertidamente sumidos. Fonte do Governo aponta os problemas de sobreposições das alterações a um mesmo diploma, mas admite abertura para voltar a alterar para recuperar os apoios apagados.

O Bloco de Esquerda, autor da iniciativa parlamentar, acredita que a situação poderá resolver-se com uma alteração na numeração, acomodando as duas alterações: a que reforça os apoios da cultura e do turismo, feita pelo Governo, e a que estabelece os rendimentos de 2019 como referência para o cálculo dos apoios a receber, introduzida por proposta do Bloco. “Os dois não são incompatíveis”, reforça a mesma fonte. A pergunta agora é mesmo “como proceder”: o partido espera que a Casa da Moeda peça uma clarificação junto dos proponentes das alterações — Parlamento e Governo — para que possam, se estiverem de acordo, ‘casar’ as alterações e incluir todas na versão final do diploma.

Do lado do BE, a leitura de que a sobreposição de diplomas possa resultar numa ‘revogação’ dos apoios à cultura e ao turismo é rejeitada. “Não foi uma revogação, apenas uma dupla alteração legislativa”, explica ao Observador fonte do grupo parlamentar. “O presidente da República teve o decreto da Assembleia” — aprovado a 3 de março — “em mãos durante três semanas. Nesse período, o Governo adicionou coisas ao seu decreto e enviou para promulgação”.

Artigo alterado com informação sobre a notícia que saiu no Jornal de Negócios sobre o mesmo assunto