Denise João, 27 anos, fez 100 quilómetros a pé com os dois filhos durante quatro dias até conseguir transporte para longe de Palma, vila atacada por grupos armados no norte de Moçambique.

“Ficámos com feridas nos pés, as crianças nem conseguiam caminhar”, conta à Lusa, na sua nova morada, o bairro de Mapupulo, em Montepuez, no canto de Cabo Delgado oposto àquele onde vivia.

Nangade, Mueda e Montepuez formam o principal corredor de fuga a pé através da mata, a partir de Palma, segundo as Nações Unidas.

Depois de 100 quilómetros a caminhar até Nangade, Denise esperou, conseguiu contactar família e receber via telemóvel o dinheiro necessário para entrar numa viatura até Mueda e depois Montepuez, onde chegou passados dez dias. Vive na casa da tia, ela própria uma deslocada depois de há meses ter sido obrigada a fugir de Muidumbe.

Porquê ir para tão longe como Montepuez? Porque é longe o suficiente para se sentir segurança, justifica Joaquim Severino, 44 anos, deslocado de Mocímboa da Praia desde 2020.

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A violência mudou-lhe a forma de ver a província e diz que, agora, já nem Mueda é opção: “está perto de Mocímboa”, diz, apesar dos 100 quilómetros que as separam em linha reta – uma distância ainda maior pelos caminhos da província – e de nunca ter sido atacada.

As caminhadas são penosas, com paragens em aldeias remotas, a comer do que oferecem os residentes, enquanto os pés saram e permitem seguir nova etapa, conta Moises Wanane.

“Chegámos a ficar duas semanas a descansar” nessas povoações porque “as crianças não conseguiam andar e eu não as conseguia carregar ao colo”, conta à Lusa, depois de fugir de Muidumbe em 2020.

Denise João mostra os pés de Júlia, filha de oito anos, agora já recuperados, mas com cicatrizes – fugiu de Palma com ela pela mão e o pequeno Sozinho José, três anos, ao colo. “Um no colo, ela pela mão, a correr”, numa fuga em que se separou do marido, do qual ainda não teve notícias.

Denise tem sempre o telemóvel na mão, tenta contactá-lo várias vezes por dia, envia mensagens, mas até agora sem ter sinal, sendo que as comunicações móveis na zona de Palma estão cortadas desde o dia do ataque, 24 de março.

Joaquim Eduardo, chefe adjunto do bairro de Mapupulo, teme pela saúde dos deslocados que recebe, sobretudo das crianças, depois de ainda no sábado ter estado no funeral de uma delas.

“Morrem de malária, porque não temos redes mosquiteiras” ou morrem daquilo a que chama “pensamentos de ir para casa”, a angústia de quem deixou para trás tudo o que tinha.

São precisos mais medicamentos no hospital para acolher a vaga de deslocados, que só em Mapupulo ascendem a mais de 8.000 famílias, refere.

Apesar de tudo, a segurança é o bem mais estimado, pois “ainda ninguém voltou” para onde morava, “por causa do medo da guerra”.

Mapupulo é por tradição um local de reassentamento. Já assim o foi na época colonial, conta Joaquim Eduardo, quando os primeiros confrontos da guerra da independência moçambicana, na zona agora afetada pelos ataques, impediram de voltar a casa residentes que trabalhavam noutras regiões, como Nampula.

Hoje, e de imediato, o importante é “haver hortas” naquela zona de deslocados para parte dos legumes servirem de fonte de rendimento e outra servir de alimento.

Não há emprego para todos em Montepuez, apesar de haver empresas dedicadas à extração de minérios, como grafite e rubis, que na perceção do chefe adjunto, deviam ter mais e melhor impacto nas condições de vida da população.

O sol põe-se e não há medo do que a noite possa trazer, apesar da escassez de alimentos, de ajudas sociais e de o futuro permanecer incerto.

Joaquim Eduardo vai descansar: já sabe que amanhã haverá mais deslocados para receber e feridas para sarar.