Tortura. Foi de tortura que Ihor Homeniuk foi alvo pelos três inspetores do SEF acusados da sua morte. Isto, na perspetiva da Procuradora da República Leonor Machado que pediu prisão para todos eles. Ainda assim, o que terá acontecido no aeroporto de Lisboa não foi, para a magistrada, suficiente para pedir que sejam condenados por homicídio qualificado, acabando por pedir uma condenação pelo crime de ofensa à integridade física grave qualificada, agravada pelo resultado — uma possibilidade aberta pelos juízes na sessão anterior.

É uma visão distante da defendida pelo advogado da viúva que quer ver os arguidos condenados pelo crime mais grave. E mais distante ainda da defesa que quer a absolvição. Qual estas três opções será tomada pelos juízes? A resposta a está pergunta será dada daqui a menos de um mês. Os juízes já marcaram a leitura do acórdão: 10 de maio, pelas 14h00, no Tribunal de Monsanto. Marcada a data, a sessão foi dada como encerrada, não sem antes de dar possibilidade aos arguidos de falar pela última vez — só um quis fazê-lo: Bruno Sousa.

Reafirmo a minha inocência, agi sempre de acordo com a conduta que foi indicada ao longo da minha carreira, sempre com os valores que me foram transmitidos”, declarou.

“Negligência”, “falta de misericórdia” e “omissão de solidariedade” foram outras das expressões utilizadas pelo Ministério Público (MP) para pedir uma pena entre oito a 16 anos de prisão para os inspetores. A Procuradora entendeu no entanto que o arguido Bruno Sousa deve ser condenado a uma pena menor, nunca inferior a oito anos de prisão, por considerar que foi “fortemente influenciado pelos outros” arguidos e pelo facto de ter “poucos anos de experiência”. Já quanto aos inspetores Luís Silva e Duarte Laja, a magistrada defendeu uma condenação entre os 12 e 16 anos, mas nunca inferior a 13 anos. “Sabiam que essas ofensas corporais graves podiam pôr em risco a vida da vítima e conformaram-se”, declarou ainda.

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Caso Ihor Homeniuk. Tribunal pondera trocar homicídio por ofensa à integridade física agravada

A magistrada começou por lembrar que, ao longo do julgamento, foram usados “eufemismos” como “acalmar, apaziguar ou conter” para explicar a atuação dos inspetores. E defendeu que as condições em que Ihor Homeniuk ficou “são condições de detenção”. “Estava confinado num espaço pequeno, já desesperado porque não tinha acesso aos seus bens, ao dinheiro, não podia usar o telemóvel e não há noticia de que lhe tenha sido explicado, com esta falta de um tradutor, que podia ter feito uma chamada”, explicou.

O MP pediu uma pena menor para o inspetor Bruno Sousa, mas nunca inferior a oito anos

A Procuradora admitiu que o cidadão ucraniano “podia ter problemas psiquiátricos relacionados com abstinência do álcool e tabaco”, mas “não só”: também o “desespero de não ter conseguido autorização de entrar em Portugal” e a “espera enorme” a que foi sujeito.

O Ihor [Homeniuk] estava a morrer e mesmo assim tentaram que fizesse a viagem de regresso, tal era a pressão, a necessidade de fazer a viagem”, criticou a Procuradora Leonor Machado.

Lembrando que “o objeto deste processo é o comportamento dos inspetores e não os factos que antecederam e sucederam a sua intervenção”, a Procuradora considerou logo no início das suas alegações que se deve extrair certidão pela prática de crimes cometidos por “outras pessoas”, como vigilantes e outros inspetores do SEF que contactaram Ihor Homeniuk no aeroporto de Lisboa.

Horas mais tarde, o advogado Ricardo Serrano Vieira, que representa o inspetor Duarte Laja, viria a anunciar nas suas alegações que o MP tinha aberto um novo inquérito à morte do cidadão ucraniano — desta vez, contra os vigilantes da empresa de segurança privada.

Defesa diz que Ministério Público abriu novo inquérito à morte de Ihor Homeniuk. Desta vez, contra os vigilantes

Advogado da viúva aponta “total frieza” dos inspetores e pede que “não haja nunca uma pena suspensa”

Contrastando com a Procuradora Leonor Machado, no tipo de crime e nas penas, o advogado da viúva pediu não só uma pena de prisão efetiva, mas que os inspetores sejam condenados pelo crime de que “vêm acusados e parcialmente confessados“: homicídio qualificado. “Sabiam que as agressões que fizeram era suficientes e bastantes para aquele resultado“, afirmou.

Lamentando que os três inspetores demonstraram “total frieza”, José Gaspar Schwalbach lembrou que o cidadão ucraniano foi deixado “sem liberdade para respirar”, de barriga para baixo e com as mãos algemadas atrás das costas. O advogado realçou a forma “humilhante” como Ihor Homeniuk foi “agredido e deixado sozinho”, referindo-se sempre ao Centro de Instalação Temporária como “estabelecimento prisional do aeroporto”.

O advogado da viúva de Ihor Homeniuk, José Gaspar Schwalbach (à esquerda)

José Gaspar Schwalbach pediu que “não haja nunca uma pena suspensa”. Referindo que os três arguidos já foram “condenados na comunicação social”, pede agora que sejam “condenados também na justiça”. “Será que o serão?”, questionou.

Defesa pede absolvição dos inspetores e lança críticas à investigação

Para os advogados de defesa só há uma saída: a absolvição. “Obviamente, os três arguidos terão de ser necessariamente absolvidos e assim se fará justiça”, afirmou Maria Manuel Candal, a primeira das três defesas a alegar. A advogada fez críticas à investigação lamentando que, em 25 anos de profissão, esta foi “a primeira vez que defesa se vê obrigada a proceder à investigação que devia ter sido levada a cabo pelo Ministério Público para corrigir falhas e omissões da acusação”.

Mostrando em tribunal imagens de videovigilância do Centro de Instalação Temporária que mostram vigilantes e inspetores a entrar e a sair da sala onde estava a vítima, a advogada lamentou que exista espaços temporais ao longo das 48 horas em que Ihor Homeniuk esteve no aeroporto, “que não se sabe o que aconteceu“. Maria Manuel Candal entendeu que deviam ter sido constituídos mais arguidos e investigadas “as várias formas de manietação que foram levadas a cabo ao longo da noite” por vigilantes e inspetores.

A advogada Maria Manuel Candal, que representa Luís Silva, e o advogado Ricardo Serrano Vieira, que defende Bruno Sousa

Ricardo Sá Fernandes, outros dos advogados, defendeu que os três arguidos apenas foram “chamados para uma missão” pela sua chefia e considerou como “manha processual” o facto de não terem sido constituídos mais arguidos: “Para não ter aqui arguidos e ter testemunhos”. O advogado elencou por exemplo várias “mentiras” que os vigilantes terão contado ao longo da investigação e do julgamento.

Sustentar a condenação com base nestas testemunhas [os vigilantes] é uma ofensa à nossa inteligência“, afirmou o advogado.

Sá Fernandes especificou uma suposta contradição de um vigilante que saiu a coxear da sala onde estava Ihor Homeniuk porque, segundo explicou à data, o cidadão ucraniano teria atirado um sofá contra ele. “Só que àquela hora já não lá estava sofá nenhum”, disse o advogado. Sá Fernandes insistiu na atuação de alguns vigilantes, nomeadamente sobre o facto de um deles ter entrado com uma revista. “Aquela revista enrolada foi para dar um açoite“, acusou.

Já Ricardo Serrano Vieira lamentou que o “comportamento dos vigilantes”, especialmente com uso da fita adesiva para manietar Ihor Homeniuk, não seja “relevante para o resultado final” da investigação. “Criámos tanto interesse naquilo que é a algemagem. Então ninguém levanta a questão das fitas?“, questionou, adiantando que “quem coloca as fitas são os vigilantes”. “Se isto não é tortura…”, atirou.

Ricardo Sá Fernandes é advogado do arguido Bruno Sousa

O advogado de Duarte Laja lamentou ainda o “posicionamento do Ministério Público neste processo”, apontado por exemplo que já depois da detenção dos arguidos, as defesas não tiveram acesso ao processo. Para finalizar as suas alegações, Ricardo Serrano Vieira mostrou um vídeo com um discurso do Papa Francisco a fazer um apelo à Justiça feita por juízes, em detrimento das “notícias falsas e calúnias que inflamam o povo”.

O juiz deve ser muito, muito corajoso, para ir contra um julgamento popular, construído antes, preparado”, diz o Papa Francisco no discurso.

Os inspetores Luís Silva, Bruno Sousa e Duarte Laja foram acusados no final de setembro, cada um, por um crime de homicídio qualificado em coautoria. Duarte Laja e Luís Silva respondem ainda por um crime de posse de arma proibida. No entanto, na última sessão, o tribunal que os está a julgar anunciou que está a ponderar uma alteração da qualificação jurídica dos factos, pondo em aberto a hipótese de serem condenados por ofensa à integridade física grave qualificada, agravada pelo resultado.

Ihor Homenyuk morreu a 12 de março no Centro de Instalação Temporária do aeroporto de Lisboa, dois dias depois de ter desembarcado, com um visto de turista, vindo da Turquia. De acordo com a acusação, o SEF terá impedido a entrada do cidadão ucraniano e decidido que teria de regressar ao seu país no voo seguinte. As autoridades terão tentado por duas vezes colocar o homem de 40 anos no avião, mas este terá reagido mal. Terá então sido levado pelo SEF para uma sala de assistência médica nas instalações do aeroporto, isolado dos restantes passageiros, onde terá sido amarrado e agredido violentamente por três inspetores do SEF, acabando por morrer.

Uma “asfixia lenta” matou Ihor Homeniuk. As fraturas e a posição em que estavam foram a conjugação “fatal”

Apesar de no relatório o SEF ter descrito o óbito como natural, o médico que autopsiou o corpo não teve dúvidas de que tinha havido um crime, alertando imediatamente a PJ, que acabaria também por receber uma denúncia anónima que referia que Ihor Homenyuk tinha ficado “todo amassado na cara e com escoriações nos braços”. Os inspetores Luís Silva, Bruno Sousa e Duarte Laja foram detidos no final de março e encontram-se em prisão domiciliária por causa da pandemia de Covid-19.