— Gostaria que todos fizessem esta experiência em casa: deitem-se de barriga para baixo, com as mãos atrás das costas. Todo o mundo vai ter alguma dificuldade em respirar. Inicialmente até ficam tranquilos, mas passado algum tempo vai gerar incómodo. Só nesta posição, vão ter dificuldade em respirar. Nós precisamos de ter a caixa torácica livre. Agora imaginem com as costelas fraturadas…

O objetivo do médico não era propriamente que todas as pessoas presentes na sala de audiências fizessem esta experiência em casa. Mas sim demonstrar aos juízes como é que Ihor Homeniuk morreu, a 12 de março nas instalações do SEF, no aeroporto de Lisboa. A resposta rápida é esta: asfixia lenta — “não temos dúvidas”, apontou Carlos Durão. Mas como é que esta asfixia foi provocada?

O médico que fez a autópsia a Ihor Homeniuk dá novamente um exemplo aos juízes que o ouvem atentamente, naquela que é a sétima sessão do julgamento do homicídio do cidadão ucraniano: “Se uma pessoa se enforcar, demora três minutos a morrer”. Mas com o cidadão ucraniano foi diferente — aliás, o Ministério Público acredita que asfixiou durante mais de oito horas. Carlos Durão não consegue estimar quanto tempo foi ao certo, mas não tem dúvidas de que a asfixia foi provada por dois fatores: as fraturas que tinha em oito costelas e a posição em que se encontrava, de barriga para baixo e algemado com as mãos atrás das costas. Foi uma conjugação “fatal”.

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Aliás, para o médico, a posição “é a que causa maior esforço respiratório”. E admite mesmo que se o cidadão ucraniano não tivesse estado nessa posição “poderia ter sobrevivido”, apesar das fraturas. Nenhuma das agressões a que terá sido sujeito provocou uma morte imediata e podia ter sido evitada: bastava que Ihor Homeniuk tivesse sido tratado após partir as costelas.

Médico diz que lesões não foram provocadas por manobras de reanimação. Defesa chama três consultores técnicos

Questionado pelos advogados, Carlos Durão afastou qualquer hipótese de as fraturas que Ihor Homeniuk tinha nas costelas terem sido provocadas por manobras de reanimação cardíaca ou sequer que tivesse morrido de arritmia cardíaca ou devido à abstinência alcoólica. Aliás, ainda antes de realizar a autópsia, “só pela análise externa” do cadáver, sentiu que “algo se passava” e, por isso, alertou a Polícia Judiciária. “Não se coadunava com aquilo que era referido, que tinha morrido de causa natural”, explicou.

O inspetor Luís Silva acompanhado pela sua advogada, Maria Manuel Candal

As defesas dos três inspetores acusados da morte de Ihor Homeniuk focaram-se em perceber se o médico não tinha sido sugestionado pela informação da PJ de que a vítima teria estado mais de oito horas algemado e, desta forma, não ter considerado outras hipóteses para a causa da morte. Carlos Durão negou perentoriamente, chegando mesmo a exaltar-se ao ver o seu trabalho ser “questionado”.

Disseram-lhes que era dos “piores” passageiros de sempre. A versão dos inspetores do SEF julgados pelo homicídio de Ihor Homeniuk

Os advogados procuraram saber se o perito seguiu as normas internacionais para casos em que as vítimas estiveram sob custódia policial. Desde logo, a razão para não ter radiografado o cadáver. Carlos Durão explicou que “não foi necessário”.

A radiografia é importante para aquilo que às vezes não vemos a olho nu. São normas aconselháveis, mas neste caso não foi preciso. Aqui, vemos as fraturas diretamente”, detalhou.

Depois, o porquê de o procedimento não ter sido acompanhado por um especialista em medicina legal, já que Carlos Durão é ortopedista. O médico garantiu que estava “habilitado” para fazer autópsias: estou no Brasil, é médico e até tem especialidade de Medicina Legal. Embora não esteja ainda inscrito naquela especialidade na Ordem dos Médicos de Portugal, o Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses autorizou-o a realizar autópsias depois de concluir cursos complementares que lhe certificavam essa capacidade. Desde 2007, já realizou mais de 1.200 autópsias.

“A forma como respirava não era normal”. Inspetor-chefe diz que ficou “perturbado” quando viu Ihor minutos antes de morrer

Deitado no colchão, com as calças pelos joelhos, algemado nas mãos e nos pés com algemas cirúrgicas — nas mãos, além destas, tinha ainda algemas metálicas. Foi assim que o inspetor-chefe Gabriel Pinto encontrou Ihor Homeniuk no dia 12 de março do ano passado: ia buscá-lo para uma nova tentativa de o fazer embarcar num voo de regresso a Istambul, onde faria escala até ao seu país, Ucrânia. Antes de entrar na sala onde o cidadão ucraniano se encontrava, foi apenas avisado pelos vigilantes do Centro de Instalação Temporária (CIT) do aeroporto de Lisboa que Ihor “cheirava mal e estava algemado” — “ninguém me informou o que tinha acontecido”, declarou.

“Quando o meti na cadeira de rodas, começou a respirar de uma forma ofegante“, explicou em tribunal.

Esticando-se na cadeira onde estava sentado, de frente para os três juízes, Gabriel Pinto tentou mesmo imitar a forma como o cidadão ucraniano estava a respirar — uma imitação que o advogado da família de Ihor Homeniuk viria a reproduzir em frente ao médico que realizou a autópsia e que viria a admitir que a forma como respirava já poderia ser um indício da asfixia.

O inspetor do SEF, Bruno Sousa, à saída do julgamento dos três inspetores do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) julgados pela morte por espancamento de Ihor Homeniuk, Lisboa, 02 de fevereiro de 2021. Os arguidos estão acusados de homicídio qualificado, punível com penas de até 25 anos de prisão. O crime terá ocorrido a 12 de março, dois dias após o cidadão do Leste ter sido impedido de entrar em Portugal, alegadamente por não ter visto de trabalho. Após ser espancado, terá sido deixado no chão, manietado, a asfixiar lentamente até à morte. ANTÓNIO COTRIM/LUSA

O inspetor do SEF Bruno Sousa responde também pelo homicídio de Ihor Homeniuk

“A forma como respirava não era normal” e o inspetor-chefe percebeu que Ihor Homeniuk “não estava bem”: “O homem parece que está a morrer”, terá mesmo comentado com o seu colega, um inspetor estagiário que o acompanhava. Optou então por colocar o passageiro de novo no colchão e chamar os enfermeiros da Cruz Vermelha. “Até fiquei um bocado perturbado. Não consegui entrar lá dentro. Tinha as pernas a tremer”, admite. Gabriel Pinto não voltou a ver Ihor Homeniuk e quando, mais tarde, voltou ao CIT foi informado que o cidadão ucraniano já tinha morrido.

Ex-diretor de fronteiras diz que isolar passageiros na sala onde Ihor Homeniuk morreu era “prática habitual”

O antigo diretor de fronteiras de Lisboa, afastado na sequência do homicídio de Ihor Homeniuk no aeroporto, admite que colocar passageiros que se “portavam mal” na Sala Médicos do Mundo era “prática habitual” e regulamentada.

Não tendo um sítio adequado para colocar uma pessoa, o único que não tem pessoas é a Sala Médicos do mundo. Tenho de retirar de lá tudo o que possa magoar. Está regulamentado e é prática habitual. Está previsto no regulamento”, disse Sérgio Henriques.

Quanto ao facto de Ihor Homeniuk ter sido algemado, o ex-diretor de fronteiras de Lisboa disse que é “perfeitamente normal”. “Os inspetores têm formação minimamente adequada em termos humanos para lidar com pessoas”, considerou. Sérgio Henriques explicou que “quem algema tem de comunicar à hierarquia” e “cabe a essa pessoa acompanhar e mandar alguém acompanhar”, que, neste caso, seria o inspetor-chefe João Diogo e o inspetor de turno João Agostinho.

Afinal, terá havido mais gente a amarrar Ihor. O testemunho que acusa os vigilantes de o enrolarem (duas vezes) com fita adesiva

Ihor Homenyuk morreu a 12 de março no Centro de Instalação Temporária do aeroporto de Lisboa, dois dias depois de ter desembarcado, com um visto de turista, vindo da Turquia. De acordo com a acusação, o SEF terá impedido a entrada do cidadão ucraniano e decidido que teria de regressar ao seu país no voo seguinte. As autoridades terão tentado por duas vezes colocar o homem de 40 anos no avião, mas este terá reagido mal. Terá então sido levado pelo SEF para uma sala de assistência médica nas instalações do aeroporto, isolado dos restantes passageiros, onde terá sido amarrado e agredido violentamente por três inspetores do SEF, acabando por morrer.

Apesar de no relatório o SEF ter descrito o óbito como natural, o médico que autopsiou o corpo não teve dúvidas de que tinha havido um crime, alertando imediatamente a PJ, que acabaria também por receber uma denúncia anónima que referia que Ihor Homenyuk tinha ficado “todo amassado na cara e com escoriações nos braços”.

“Isto aqui é para ninguém ver”. As 56 horas que levaram à morte de um ucraniano no aeroporto de Lisboa

Os inspetores Luís Silva, Bruno Sousa e Duarte Laja foram detidos no final de março e encontram-se em prisão domiciliária por causa da pandemia de Covid-19. Foram acusados no final de setembro e respondem, cada um, por um crime de homicídio qualificado em coautoria. Duarte Laja e Luís Silva respondem ainda por um crime de posse de arma proibida.