A tarde estava destinada ao seu depoimento, mas o antigo porta-voz da Polícia Judiciária Militar (PJM), Vasco Brazão, prolongou a sua defesa e o ex-diretor Luís Vieira já só começou a falar por volta das 16h30 desta quinta-feira. Perante o coletivo de juízes do tribunal, improvisado em Santarém para julgar os 23 arguidos do caso, Vieira apontou a culpa a possíveis falhas de memória por causa dos seus “68 anos”, mas a sua resposta a certas perguntas não convenceu o juiz.

Com o passar das horas a sua defesa ficou mais confusa. Mas houve um pormenor que marcou a sua intervenção ao longo da investigação ao furto em Tancos, em 2017, e que Luís Vieira deixou claro: “Na minha cabeça só estavam dois desejos: reverter a decisão do Ministério Público [de entregar o caso à PJ civil] e recuperar o armamento de guerra”, diz ex-diretor da PJM.

O juiz que preside o coletivo, Nelson Barra, seguiu o despacho de acusação desde o dia a que foi detetado o furto nos Paióis Nacionais de Tancos, a 28 de junho de 2017. O coronel recordou que foi contactado pelo capitão Bengalinha, o oficial de serviço que foi a local, mas que até desvalorizou o caso e foi dormir. Só no dia seguinte, quando o militar lhe mandou um e-mail — a ele e ao diretor da Investigação Criminal, coronel Estalagem –, com o levantamento do material em falta, percebeu a verdadeira dimensão do crime.

O material de guerra “muito, muito perigoso”

Ao contrário dos habituais furtos de armas que já tinham sido registados em instalações militares, segundo disse, tinha sido levado material de guerra “muito muito perigoso” e “altamente sensível”, pelo que telefonou imediatamente ao então diretor da Polícia Judiciária civil, Almeida Rodrigues, a dar-lhe conta dessa listagem a fim de serem contactadas as polícias de outros países, não fossem o material ser usado por terroristas.

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Vieira afirma que foi dias depois, a 3 de julho, foi surpreendido pelo telefonema do responsável pelo Laboratório de Polícia Científica da PJ civil, Carlos Farinha, a pedir para fazer uma inspeção judiciária o local do crime. “Fiquei muito admirado. Se ele achasse que podia contribuir com alguma colaboração, devia falar com o mestre Nuno Reboleira [também arguido e do laboratório da PJM], não comigo”, afirmou. No limite, acrescentou, teria que ser o Ministério Público a contactar.

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O juiz perguntou-lhe, então, se nessa altura sabia que tinha havido uma reunião na sede da PJ civil, com os procuradores do processo, e em que tinha ficado definido que a investigação passaria para eles. Vieira respondeu negativamente. E, contrariando a versão de Farinha que já testemunhou em tribunal, disse que não discutiu com ele qualquer questão legal sobre delegação de competências, acabando por desligar-lhe o telefone.

Vieira perdeu a coragem de voltar a falar com Joana Marques Vidal

Foi depois a Procuradora-Geral da República, Joana Marques Vidal, quem lhe ligou a comunicar essa decisão. “Mas não lhe disse a a Polícia Judiciária Militar ficava a coadjuvar?”, interrogou o juiz, Luís Vieira garante que não, lembrando que foi um telefonema duro que não lhe deixou abertura para voltar a tocar no assunto com ela.

Luís Vieira recusou ter escolhido o major Brazão para liderar a investigação por este ter ascendente sobre si, como descreve a acusação do Ministério Público, mas sim pelas suas competências e por estar a regressar de férias. Já Bengalinha tinha muitas férias atrasos e precisava descansar. “O capitão Bengalinha era solteiro, bom rapaz, não tinha filhos e por isso não se importava de trabalhar e não tirar férias”, descreveu.

Não lhe disse que se não fosse de férias que o punha a andar para a Força Aérea?, interrogou o juiz.

Sim, para ele ver que era sério, respondeu Vieira

Já com Brazão na investigação, Vieira diz que estranhou que a PJ civil não quisesse a PJM no Algarve para falar com Fechaduras. Fechaduras, a alcunha de Paulo Lemos, denunciou ao Ministério Público que o assalto iria acontecer e essa informação acabou por ser dada a um elemento da Polícia Judiciária Militar do Porto.

Na altura os militares mostraram um documento com informações de Fechaduras a Vieira. “Acho que se chama um blogue”, disse, onde eram mencionados os nomes de Carolina Salgado e de Pinto da Costa, com quem ele terá tido ligações.

Coronel pensou em demitir-se, mas depois apostou em Fechaduras

Já em agosto, quando foi ter com o então ministro da Defesa ao seu gabinete, o também arguido Azeredo Lopes, para lhe dar um documento com as razões jurídicas para que a investigação ficasse nas mãos da PJM, Luís Vieira diz que foi com a intenção de se demitir no dia seguinte (dia 5). Mas nesse dia o coronel Estalagem ter-lhe-á falado na possibilidade de explorar “uma amizade entre o Lage de Carvalho [PJM do Porto] e o Lima Santos [GNR do Algarve].

O coronel Luís Vieira afirma que então quis que os seus homens soubessem mais sobre este tal de Fechaduras e as razões da PJ civil quererem falar com ele sem a PJM. E foi por isso que os seus militares foram ao Algarve e no regresso pararam perto da sua casa, em Sesimbra, para lhe dar conta dessas informações.

Mas devia ser uma informação importante, para sair de casa aquela hora, disse o juiz

Disseram-me que o Fechaduras falava muito e se gabava das suas relações com a PJ, que lhe tinham dado dinheiro e um telemóvel e que eles sabiam quem eram os autores do assalto. A fonte desta informação seria alguém que vivia com ele, depois disseram me que o responsável pela organização só viria no final do ano. Fiquei sempre com a ideia que o informador era o que vivia com o Fechaduras, respondeu Vieira

O ex-diretor da PJ militar defendeu-se assim da tese do Ministério Público de que sabia que os seus militares estavam a falar com um informador, que acabou por revelar-se o mentor do assalto: João Paulino.

Os encontros com Azeredo Lopes e o achamento

O Ministério Público acusa-o de ter estado duas vezes em casa de Azeredo Lopes para que ele conseguisse que a investigação voltasse para a PJM. Vieira admite ter estado à sua porta uma vez, antes da visita de Marcelo Rebelo de Sousa aos Paióis Nacionais de Tancos, mas justifica a outra ativação da antena do seu telemóvel na zona de Santo António dos Cavaleiros com “uma relação amorosa” que mantém com uma mulher que vive naquela zona. Foi também essa a justificação que deu para a sua localização na noite em que foram recuperadas as armas num terreno na Chamusca.

Nesse dia 20 de outubro, Vieira garantiu — sem deixar o juiz convencido — que só soube que tinham sido recuperadas as armas de Tancos quando lá chegou. “Vai às 2h da manhã com uma expectativa? Isso não faz muito sentido… Mas no dia do furto ficou a dormir, e nesse dia não lhe transmitem nada e vai. É incongruente”, afirmou.

Depoimento salva chefe da Casa Militar do Presidente da República Marcelo Rebelo

Quanto aos seus contactos com João Cordeiro, o chefe da Casa Militar do Presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa. Luís Vieira garante que resultaram da amizade que mantém com ele desde os anos 90, quando trabalharam juntos.

“Desloquei-me muitas vezes ao gabinete dele em Belém. Ele não estava preocupado com Tancos, estava mais preocupado por haver um general preso, ele de Tancos não sabia nada”, garantiu.

O juiz perguntou-lhe então porque mandou e-mails ao chefe da Casa Militar e ao chefe de gabinete de Azeredo Lopes, o general Martins Pereira. “Não sei senti me sozinho… Era o estado de espírito em que eu estava”.

Não seria mais fácil falar com a procuradora?, perguntou o juiz

Achei que não conseguia, respondeu.

Luís Vieira vai continuar a prestar depoimento na próxima segunda-feira.

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