O Conselho de Ministros aprovou esta quinta-feira o pacote legislativo da Estratégia Nacional Contra a Corrupção. Os instrumentos de justiça negociada que permitirão premiar quem colabore com as autoridades judiciárias e a criação de um Regime de Proteção de Denunciantes vão agora ser submetidos à aprovação da Assembleia da República por estarem fora das competências legislativas do Governo.
Já o Regime Jurídico de Prevenção da Corrupção, outra das grandes medidas da Estratégia e que inclui o alargamento da obrigatoriedade de instrumentos de prevenção ao setor privado, será executado através de decreto-lei do Ministério da Justiça e vai levar à criação de uma nova entidade chamada “Mecanismo” — o mesmo nome da série brasileira da Netflix sobre o processo Lava Jato.
“O Governo está fortemente empenhado neste pacote legislativo na perspetiva de criar condições efetivas para a prevenção e repressão de fenómenos corruptivos. Temos assistido a processos muito longos e a resultados que não coincidem com as expetativas, o que tem preocupação a nível social”, afirmou a ministra Francisca Van Dunem em conferência de imprensa no final do Conselho de Ministros.
Esta foi a terceira vez que a Estratégia Nacional Contra a Corrupção foi apreciada pelo Conselho de Ministros. A versão original proposta por um grupo de trabalho nomeado pela ministra Francisca Van Dunem foi aprovada em setembro de 2020, seguindo-se um período de consulta pública que decorreu durante o mês de outubro. A versão final da Estratégia deveria ter sido discutida em dezembro mas o agravamento da crise pandémica levou a um adiamento para 18 de março de 2021 — altura em que o documento final submetido por Van Dunem recebeu luz verde do Conselho de Ministros. Esta quinta-feira foi a vez do pacote legislativo da Estratégia que será enviado para a Assembleia da República ser analisado e aprovado.
Conselho de Ministros aprova versão final da Estratégia Nacional Contra a Corrupção
Justiça negociada avança
Tal como o Observador divulgou a 30 de julho de 2020, a primeira grande alteração da Estratégia Nacional Contra a Corrupção assenta na instituição de mecanismos de justiça negociada que permitirão avançar com acordos de colaboração premiada com arguidos ou suspeitos na fase de inquérito ou acordos de sentença na fase de julgamento.
Entre os diversos prémios que a lei deverá permitir, encontram-se medidas de dispensa de pena ou atenuação especial de pena para suspeitos ou arguidos que forneçam provas que ajudem na descoberta da verdade material de um determinado processo judicial.
Alteração do 374.º – B do Código Penal e de outros artigos em que se encontram previstos os institutos da dispensa de pena e da atenuação da pena, em matéria de corrupção, uniformizando os regimes. A lei impõe atualmente um prazo de 30 dias após a consumação do crime para ser feita denúncia, de forma a que o denunciante seja beneficiado com dispensa ou atenuação especial de pena. O grupo de trabalho propôs que o prazo fosse eliminado de forma a permitir que um suspeito ou arguido possa colaborar com o Ministério Público (MP) e denunciar o crime que presenciou ou praticou, recebendo em troca uma suspensão ou atenuação especial de pena que já estão previstas na lei.
“Há necessidade de quebrar os pactos de silêncio que caracteriza os crime de corrupção”, afirmou a ministra Francisca Van Dunem na conferência de imprensa no final do Conselho de Ministros.
Pressupõe-se assim a colaboração na descoberta da verdade material, eliminando-se a possibilidade de dispensa de pena associada à mera omissão da prática do ato ilícito. O mesmo espírito verifica-se com as alterações relacionadas com atenuação especial da pena.
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Francisca Van Dunem explicou que existem dois modelos de dispensa de pena: a dispensa obrigatória e a facultativa.
No primeiro modelo (a dispensa de pena obrigatória), o mesmo aplica-se na fase de inquérito e tem os seguintes requisitos:
- que o agente denuncie o facto antes de instaurado procedimento criminal;
- que no caso de ter feito uma promessa de corrupção (corruptor ativo), retire a mesma
- que no caso de ter recebido ‘luvas’ ou outra vantagem (corruptor passivo), devolva as mesmas
- e que colabore com o Ministério Público na descoberta da verdade material do processo
Em resposta aos jornalistas, a ministra da Justiça afirmou que a dispensa de pena se aplicava a “situações de menor gravidade”, enfatizando que a mesma se aplicará a crimes de corrupção lícita (um ilícito criminal que corresponde a uma minora de processos por corrupção) mas não se poderá aplicar a casos relacionados com corrupção ilícita. “Sendo certo que a dispensa de pena não se aplicará ao agente quem tenha praticado um ato ilícito”, afirmou Van Dunem.
Também está garantida a dispensa de pena no caso de corrupção para ato lícito
Os acordos que sejam estabelecidos pelo Ministério Público e pelos arguidos terão de ser autorizados pelo juiz de instrução criminal (como acontece neste momento com o mecanismo de suspensão provisória do processo) e, depois de homologados, terão de ser obrigatoriamente seguidos pelos tribunais de julgamento.
Já a dispensa facultativa aplica-se à fase de instrução criminal. E porque é facultativa? Porque depende da avaliação do juiz e do Ministério Público. É exigido ao agente corruptivo (ativo ou passivo) que confesse os crimes de forma integral e sem reservas e colabore ativamente na descoberta da verdade.
Na fase do julgamento, entram em ação os acordos de sentença — que é desenvolvida no ponto seguinte deste texto.
Nos restantes casos, estarão em causa medidas de atenuação especial da pena.
Alteração ao art. 344. º do Código de Processo Penal relacionado com as confissões em julgamento.
São os chamados acordos de sentença em julgamento — e poderão ser aplicados a outros crimes que não apenas os crimes económico-financeiros. Isto é, os arguidos terão de confessar de forma integral e sem reservas os crimes que praticaram, sendo acordado com o Ministério Público uma medida mínima e máxima da pena a aplicar. A pena final será decidida pelo tribunal de julgamento.
“Esta é uma medida que é aplicada em muitos países com êxito. Muitas vezes diz-se: ‘não se percebe porque razão lá fora os julgamentos são tão rápidos e em Portugal não se consegue’. De facto, não chegam a ser feitos julgamentos. São feitos acordos”, afirmou Francisca Van Dunem.
Ou seja, o Governo espera com que esta medida impulsionar e promover julgamentos muito mais rápidos que, através destes acordos de sentença, permitam a dispensa de produção de prova em audiência e a passagem direta para a leitura da sentença.
A lei já permite que a confissão integral e sem reservas em julgamento possa beneficiar de dispensa ou atenuação especial da pena. Mas o juiz tem um poder discricionário sobre essa medida, podendo ou não aplicá-la. Pretend-se retirar tal poder discricionário aos juízes de julgamento.
Proteção dos denunciantes
O regime de proteção de denunciantes da União Europeia será finalmente transposto para a lei portuguesa e visa assegurar proteção para os denunciantes que estejam dentro de organizações criminosas ou de outro tipo de organização (entidade pública, empresas, etc.) e que desejem colaborar com a Justiça na descoberta da verdade material sobre determinado ato ilícito.
O Parlamento irá assim receber uma proposta de lei para a criação de um Regime de Proteção de Denunciantes, onde deverá ficar assegurado que os membros de determinada organização pública ou privada que denuncie práticas ilícitas não poderá ser despedido ou prejudicado em termos de progressão de carreira.
A grande curiosidade neste ponto residente em saber se Rui Pinto, que não é formalmente um whistleblower, poderá ser beneficiado com as novas regras.
Prevenção alargada ao setor privado
A prevenção é uma parte fundamental da Estratégia Nacional Contra a Corrupção. Deverá ser criado um Regime Jurídico de Prevenção da Corrupção que terá várias inovações, sendo que a primeira prende-se com uma equiparação entre o setor público e o setor privado no que diz respeito à obrigatoriedade de ter um plano de prevenção contra a corrupção. É também criada uma nova entidade, chamada “Mecanismo”, que será responsável pela fiscalização da execução do Regime Jurídico de Prevenção da Corrupção.
Desde 2009 que todos os organismos públicos são obrigados a ter tais planos e essa obrigatoriedade deverá ser agora estendida ao setor privado, mas com várias nuances:
A obrigatoriedade aplica-se apenas a empresas com grande dimensão, excluindo-se as pequenas e médias empresas.
As empresas que sejam abrangidas por tal obrigatoriedade, terão de nomear um responsável pela aplicação do plano de prevenção de corrupção.
As empresas abrangidas pelo Regime Jurídico de Prevenção da Corrupção serão obrigadas a dar formação aos seus funcionários, a ter códigos de conduta e a ter canais de denúncia para que os seus funcionários, fornecedores ou consumidores possam denunciar eventuais irregularidades. As entidades do setor público terão a mesma obrigatoriedade.
No caso de incumprimento, serão aplicadas coimas sancionatórias e ficarão excluídas automaticamente de apoios públicos ou de contratos com o Estado.
Já os responsáveis dos organismos públicos que estão obrigados a aplicar os planos de prevenção de corrupção apenas serão sancionados disciplinarmente.
O setor privado deverá ficar satisfeito com um benefício que este novo regime deverá trazer: a possibilidade de isenção de responsabilidade penal das pessoas coletivas.
Ou seja, caso fique demonstrado que os órgãos sociais de uma empresa tudo fizeram para que determinado crime não fosse praticado por um seu representante (presidente, administrador ou funcionário), então a sociedade não poderá ser constituída arguida e acusada pelo MP. Um exemplo prático: a EDP poderia eventualmente beneficiar desta isenção no caso das rendas excessivas se a mesma já estivesse em vigor e, obviamente, se ficasse comprovado que tudo tinha feito para que António Mexia e João Manso Neto não tivessem alegadamente praticado os crimes que o MP lhes imputa.
Combate aos mega processos
Outra medida que deverá gerar debate prende-se com os megaprocessos. Os especialistas aconselharam a ministra Francisca Van Dunem a promover uma alteração cirúrgica no Código Penal de forma a fazer cessar a conexão de processos que permite ao Ministério Público promover a fusão de diversos inquéritos num só. “Há uma necessidade de intervenção no processo penal para facilitar a separação de processos”, afirmou a ministra Francisca Van Dunem na conferência de imprensa no final do Conselho de Ministros.
Na prática, a lei deverá deixar claro que tal conexão de processos essa se a junção de inquéritos fazer retardar a conclusão das investigações. Tal alteração poderá reforçar os poderes hierárquicos dos responsáveis do Ministério Público para impedir que os procuradores titulares dos inquéritos os possam construir.
Um exemplo prático para melhor compreensão desta alteração: a Operação Marquês. Trata-se de um inquérito que nasceu da fusão de outros processos, sendo que se investigaram diferentes realidades que têm conexão entre si. Por exemplo, Ricardo Salgado foi acusado de corromper o ex-primeiro-ministro José Sócrates e Henrique Granadeiro e Zeinal Bava (ex-líderes da Portugal Telecom) por razões diferentes. A alteração legislativa pretende promover que o MP pudesse fazer duas acusações consoante os crimes de corrupção ativa imputados a Salgado.
Outro exemplo: José Sócrates foi acusado de corrupção passiva por alegadamente ter beneficiado três grupos económicos (Grupo Espírito Santo, Grupo Lena e Grupo Vale do Lobo), logo o MP poderia fazer três acusações e não uma só.
Enriquecimento oculto fica para o Parlamento e prazos de prescrição são harmonizados
Francisca Van Dunem explicou em conferência de imprensa que o Governo optou por deixar a questão do enriquecimento oculto para o Parlamento — onde o PS já apresentou uma proposta de lei que prevê a aplicação de uma pena de prisão até cinco anos aos titulares de cargos políticos e de cargos públicos que não cumpram as suas obrigações declarativas, daí o Governo não repetir a proposta.
PS agrava para cinco anos pena de prisão por ocultação intencional de enriquecimento
Por outro lado, enfatizou a ministra da Justiça, foi aprovada em 2019 o Pacote de Transparência (a lei 52/2019) que já prevê um agravamento da sanção penal (pena de prisão) por ocultação de riqueza dos titulares de cargos políticos e públicos. Sendo uma lei do Parlamento, será o Parlamento a analisar a sua alteração.
Sobre os prazos de prescrição, a ministra da Justiça explicou que está em causa uma harmonização dos prazos de prescrição para os diferentes crimes de prescrição. “Não há elevação dos prazos de prescrição em termos de gerais”, explicou.
Isto é, os prazos para os crimes de corrupção praticados por funcionários e previstos no Código Penal foram alargados em 2010 mas os crimes de corrupção praticados por titulares de cargos políticos previstos em legislação autónoma tinha prazos de prescrição diferentes. Daí que tenha sido “necessário fazer uma harmonização no sentido de corresponder o mesmo prazo de prescrição aos mesmos crimes, estando no Código Penal ou noutra legislação”, explicou.