É “injusto” retratar o Banco Espírito Santo e, sobretudo, o Novo Banco como “um bando de malandros“, defendeu esta terça-feira Eduardo Stock da Cunha, ex-presidente do Novo Banco na comissão parlamentar de inquérito. Esse retrato é feito frequentemente, na sociedade portuguesa, mas o banqueiro que sucedeu a Vítor Bento sublinha que havia “maças podres” e “vilões” no BES mas a “esmagadora maioria” dos trabalhadores foram verdadeiros “heróis” – e muitos acabaram por perder o emprego. A respeito de grandes devedores, o banqueiro diz que, em comparação com outros países, em Portugal é mais difícil executar garantias: “talvez porque somos um país de brandos costumes“, justificou.
A defesa de Eduardo Stock da Cunha foi para os “muitos trabalhadores”, vários dos quais acabaram por ser envolvidos nos processos de redução de pessoal sob a alçada de Eduardo Stock da Cunha e do seu sucessor, António Ramalho. Foram trabalhadores que foram ameaçados pelos clientes, sofreram psicologicamente com o aconteceu, perderam dinheiro porque vários foram ao aumento de capital (de junho de 2014) – “e mais alguns terão comprado papel comercial, mas esses devem ter sido poucos porque não tinham 50 mil ou 100 mil euros para lá investir”.
Essa é uma referência aos chamados “lesados do BES”, aforradores que perderam dinheiro nos instrumentos de dívida (papel comercial) de empresas do Grupo Espírito Santo, vendidos aos balcões do BES – que acabaram por ser parcialmente ressarcidos pelos contribuintes graças a um acordo com o Estado, já no governo de António Costa. Era nesses investimentos que havia investimentos mínimos unitários de 50 mil ou 100 mil euros. Stock da Cunha disse “respeitar” esses lesados mas quis aproveitar a audição nesta comissão de inquérito para lembrar os trabalhadores cujo ânimo, lembrou, esteve no topo das prioridades assim que o banqueiro veio para o Novo Banco, numa comissão de serviço em que interrompeu a carreira na banca londrina.
“Nunca foi reconhecido esse contributo dos trabalhadores do Novo Banco“, sublinhou Eduardo Stock da Cunha, numa audição transmitida pelo site do Canal Parlamento que teve vários problemas técnicos na primeira hora da sessão (e também no final). Não é permitida a presença de jornalistas nestas audições, devido às limitações relacionadas com a Covid-19.
Eduardo Stock da Cunha já tinha sido ouvido pelos deputados, no parlamento, por ocasião da (primeira) comissão de inquérito sobre o colapso do Banco Espírito Santo (BES). Foi em meados de fevereiro de 2015 e Stock da Cunha foi inquirido, nessa altura, na qualidade de presidente do Novo Banco, cargo que viria a abandonar em julho de 2016 (foi António Ramalho o substituto escolhido).
Nessa audição, em fevereiro de 2015, o banqueiro dizia que o Novo Banco tinha “uma situação de liquidez razoável”, depois da forte quebra de depósitos que tinha sentido após a resolução mas da qual tinha recuperado parcialmente graças a campanhas de captação e retenção de depósitos (polémicas, na altura, porque estava a concorrer com os bancos que estavam a contribuir para o Fundo de Resolução, o seu único acionista na altura.
A propósito da questão da liquidez, que era um problema do Novo Banco naqueles primeiros meses, Stock da Cunha deu um exemplo da “opacidade” que havia nas contas da instituição, situações “opacas” que em alguns casos demoraram “meses” a compreender na totalidade, para quem vinha de fora.
Um exemplo foi um ativo que era um “certificado de seguro ao portador”, um conceito estranho que, ainda assim, chamou à atenção de Stock da Cunha porque se dizia que havia 200 milhões em liquidez que seria muito útil para a instituição naquela fase. Ao investigar mais de perto, percebeu-se que era um produto emitido pela seguradora BES Vida que tinha sido subscrito pelo banco – mas o tal produto tinha na sua base fundos que, por sua vez, assentavam em outros fundos e tinham títulos em fundos de investimento no Luxemburgo. Na base estavam, afinal, créditos a um dos dos grandes devedores.
Inicialmente, Stock da Cunha hesitou quando a deputada Mariana Mortágua, do BE, lhe questionou quem era esse grande devedor – devido a receios de responsabilização na área do segredo bancário. Quando o presidente da comissão, Fernando Negrão, lhe indicou que tinha de responder e que não havia problemas quanto ao segredo bancário porque há documentos onde esses devedores estão expressos, Stock da Cunha então quebrou o tabu: era um crédito à Ongoing.
BES tinha rubrica de juros anulados a grandes devedores. “Portugal é um país de brandos costumes”
O antigo presidente do Novo Banco Eduardo Stock da Cunha disse, também, que o BES tinha uma rubrica de juros anulados para cada um dos devedores, que chegava a 10 milhões de euros por ano.
“Relativamente a todos os devedores, um a um, pedi que me dissessem a realidade dessa rubrica que se chamava juros anulados. Ou seja, o Novo Banco – o seu antecessor [BES] – tinha por tradição contabilizar uma série de juros que engordavam a margem financeira, e depois quando chegava o dia eles não se verificavam e tinham que se anular”, referiu o gestor, que detalhou um caso de um cliente “com uma exposição importante” em que os juros eram pagos de dois em dois anos.
O antigo presidente do Novo Banco estimou esses juros anulados em “montantes significativos” de cerca de 10 milhões de euros por mês. “Não há orçamento que resista”, referiu, acrescentando que “não era muito difícil perceber, quando chegámos e passados seis meses, em março e abril, que os juros não iam ser pagos. Mas continuavam regularmente a ser periodificados, e portanto algures em 2016, ou final de 2015 ou meio de 2015, saber-se-ia que afinal tínhamos que anular 24 meses de periodificação de juros”, detalhou.
A propósito de grandes devedores, durante uma curta parte da audição, Stock da Cunha referiu-se também à sua experiência profissional em países como o Reino Unido e os Estados Unidos da América para dizer que, em Portugal, há uma prática menos agressiva na tentativa de recuperar créditos e executar garantias – embora até exista alguma legislação nesse sentido.
É certo que “os bancos não podem ser cobradores de fraque”, mas porque é que os bancos não são mais agressivos nessa matéria? Stock da Cunha diz que não é jurista e, portanto, tem dificuldade em responder a essa pergunta, mas aponta: “Portugal é um país de brandos costumes“.
“Retransmissão”. Stock da Cunha avisou BdP para os riscos, mas acatou
Em 2015, Stock da Cunha tinha dito: “Já não estamos nos cuidados intensivos. Passámos para a sala de observações”. Menos de 10 meses depois, o Banco de Portugal acabaria por determinar uma mudança do perímetro de ativos e passivos do Novo Banco (vs do BES mau), melhorando a situação de capital do Novo Banco em cerca de dois mil milhões de euros – a chamada “retransmissão” que gerou muita controvérsia porque alguns credores tinham achado que os seus títulos tinham passado para o Novo Banco e, agora, voltavam para a “massa falida”, onde teriam muito poucas probabilidades de serem reembolsados.
Esta terça-feira, o banqueiro voltou a referir-se a essa “retransmissão” dizendo que mostrou ao Banco de Portugal que tinha muito receio sobre os riscos dessa decisão. Stock da Cunha sublinhou que “a autoridade de resolução é a única entidade que podia mexer no perímetro – todas as alterações ao perímetro foram da responsabilidade única e exclusiva do Banco de Portugal enquanto entidade de resolução” e acrescentou que aquela imposição de perdas aos investidores, embora legalmente justificável, poderia ter impactos importantes.
“Não era uma situação que nos fosse confortável mas respeitámo-la – e fizemos o melhor que pudemos, na altura“, diz Stock da Cunha, lembrando que perguntou “várias vezes ao Banco de Portugal se havia outras possibilidades, sugeri algumas alternativas dizendo que não sabia se eram exequíveis, e alertei que havia alguns riscos”. Como o Banco de Portugal não concordou, Stock da Cunha aceitou a decisão, comentando, na altura: “cá continuaremos até ao dia em que eu já disse que ia sair“.
Também nessa altura, Stock da Cunha admitia que era “possível” vender o banco ainda em 2015, embora fosse necessário “um esforço grande”. Isso acabou por não acontecer, apesar de alegadamente nessa fase haverem 17 interessados numa lista do Banco de Portugal que Eduardo Stock da Cunha dizia não ter conhecimento. Sobre a garantia pública soberana de Angola aos créditos do BESA, Stock da Cunha disse que eram assuntos da responsabilidade do Banco de Portugal. “Eu nasci no dia 4 de agosto de manhã. Quando nasci não tinha BESA, nem garantia”, atirou, uma declaração repetida esta terça-feira, em traços gerais.
*com Agência Lusa