Com o aproximar do verão, aproxima-se também o início das negociações para o próximo Orçamento do Estado e, com ele, os primeiros sinais de tensão. A lei das grandes opções — uma proposta que define a estratégia e os investimentos do Governo para os próximos anos — acabou adiada sem votação depois de o Executivo ter percebido, em conversas com os partidos, que o documento acabaria por ser chumbado, uma intenção que o PCP assume. Agora, o processo vai prolongar-se na esperança de que haja forma de voltar a trazer os antigos parceiros orçamentais para esta espécie de aquecimento pré-orçamental, que em anos anteriores resultou sempre em votações idênticas à do Orçamento do Estado.

Um dos focos de tensão é, desde logo, a data em que a discussão acontece: se antes a lei das Grandes Opções (que se chamava Grandes Opções do Plano) era entregue ao mesmo tempo que o Orçamento do Estado para cada ano, portanto em outubro, com a alteração da Lei de Enquadramento Orçamental passou a ter de ser apresentada no Parlamento até 15 de abril — uma mudança que, para alguns partidos, veio condicionar o debate sobre Orçamento, uma vez que esta fase inicial acontece meses antes de os partidos poderem conhecer as propostas concretas do Governo e a alocação de dinheiro que pretende fazer para uma delas.

A acusação que o PCP, que viabilizou o último Orçamento do Estado, deixa é clara: “O objetivo desta alteração é condicionar desde já o Orçamento. Mas o PCP não se deixará condicionar nem vai limitar nem a sua apreciação nem a sua iniciativa no OE2022”, diz ao Observador o deputado Duarte Alves. “Este desfasamento no tempo entre as duas discussões — a das Grandes Opções do Governo e a sua concretização no OE — procura retirar dimensão política à discussão orçamental e torná-la cada vez mais tecnocrática; para os tecnocratas, seja em Bruxelas ou em Lisboa, é difícil aceitar que este deve ser um processo democrático e não tecnocrático”. E concretiza: “Se não tivesse havido um requerimento do PS para adiar esta votação, a nossa intenção seria de votar contra”.

Este mesmo aviso tinha chegado ao Governo através dos próprios partidos, em conversas confirmadas tanto por estes como pelo Executivo ao Observador. “As nossas manifestações públicas não foram diferentes do que foi comunicado ao Governo”, frisa o deputado comunista. Também o Bloco de Esquerda falou com o Governo sobre a proposta, reiterando as críticas públicas — as opções estratégicas do Governo são “vagas” e não dão centralidade a reformas na área laboral, criticou o partido na semana passada, no debate parlamentar que resultou num adiamento da votação.

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“Conversámos com os partidos com quem negociamos orçamentos e o ministro do Planeamento mostrou disponibilidade no debate em plenário para alterações na especialidade”, explica fonte do Governo ao Observador, lembrando que o PS já pediu em vários casos para que propostas de lei baixem às comissões sem serem votadas primeiro (Estatuto do Antigo Combatente, Lei das Freguesias ou o regime jurídico da violência doméstica são alguns exemplos). Mas também aproveita para passar a bola aos partidos: “Se a Lei das Grandes Opções vai ser aprovada ou não é algo que só os partidos políticos podem dizer e em função da especialidade”, frisa a mesma fonte.

Do lado do PCP, com quem interessa ao Executivo contar para o próximo Orçamento, vai-se deixando um aviso que torna clara a principal preocupação dos comunistas: seja qual for o resultado da discussão adiada, o próximo Orçamento não se resolve sem que o atual seja cumprido. E o relógio está a contar. “O que se exige é que o Governo cumpra e execute o Orçamento e as medidas que foram incluídas por iniciativa do PCP sobre o SNS, apoios sociais, emprego… É nisso que o Governo deve concentrar-se, sem subterfúgios”. Até porque, sem este Orçamento devidamente executado, será mais difícil o PCP alinhar no próximo.

PCP faz pressão para ver Orçamento cumprido. Reuniões atrasaram-se, mas Governo vai voltar a convidar

Os partidos vão agora passar a afinar o documento na especialidade, sendo certo que assim o processo terminará mais próximo da discussão orçamental. Com um desfecho, espera o Governo, mais próximo dos anos anteriores: durante os anos de ‘geringonça’, esta lei passou sempre com os votos a favor de PS, Bloco de Esquerda, PCP, PEV e PAN, exceto em 2016, ano em que o PAN se absteve. Só em 2020 — o primeiro ano sem acordos assinados à esquerda — o documento passou mas com abstenções destes partidos e da deputada não inscrita Joacine Katar Moreira. Ou seja, a votação do documento costuma, de facto, coincidir com a votação do Orçamento, agendada para outubro, e que normalmente é feita em paralelo com esta. Desta vez, o que se antecipava era que o documento fosse, pela primeira vez num Governo de António Costa, chumbado — o que, não tendo consequências práticas para a aprovação do Orçamento em si, seria um mau sinal para o processo que aí vem.

Partidos criticaram plano no Parlamento, CES também

No Parlamento, na semana passada, o próprio Governo, pela voz do ministro do Planeamento, Nelson de Souza, assumiu que não seria benéfico “antecipar e muito menos condicionar a discussão do OE2022, a ter no momento e nas sedes mais adequadas”, temendo que a multiplicação de documentos de planeamento trouxessem o “risco sério da desvalorização da sua importância” e que fosse de facto “excessivo o hiato de tempo entre a apresentação destas Grandes Opções e o início da preparação efetiva do Orçamento do Estado”. E os partidos deixaram as suas opiniões, pouco abonatórias: para o PSD, o projeto de lei sofre “do mesmo vício do Programa de Estabilidade”, ou seja, “fica totalmente dependente da execução do Plano de Recuperação e Resiliência”; à esquerda, o PCP lamentou a tal diferença temporal e o BE criticou as opções “vagas” do Executivo.

No PAN, Inês Sousa Real descreveu o documento como “uma profissão de fé nos milhões da ‘bazuca’ europeia” e o PEV, que também tem negociado os Orçamentos do Governo, lamentou que as opções continuassem “condicionadas pelas imposições da União Europeia”, salientando, como cita a Lusa, a ausência da questão da retirada do amianto no documento.

A lei das Grandes Opções é um instrumento de política económica do Governo, em termos mais gerais, que é suposto ser “harmonizado”, como garantia a lei até ter sido feita esta alteração de calendário, com o próprio Orçamento. No início de cada legislatura é feita a pensar no conjunto de anos seguintes, como aconteceu no ano passado (2020-2023), mas este ano foi revista para 2021-2025 já a pensar nas alterações necessárias por causa da pandemia e passou a conter boa parte do que são os objetivos do PRR.

No parecer obrigatório por lei que o Conselho Económico e Social (CES) entregou a propósito do documento, o CES faz a mesma crítica sobre o problema que a alteração do calendário veio trazer: “As Grandes Opções do Plano só podem ser devidamente avaliadas conhecendo-se quer os meios financeiros a alocar às medidas apresentadas, quer o cenário macroeconómico para o período a que as mesmas reportam. Estas duas informações só serão conhecidas (e, em parte dado não existirem orçamentos plurianuais), com a apresentação da proposta de OE”. Ou seja, sem Orçamento, o exercício de avaliar os objetivos gerais do Governo em termos de política económica fica mais esvaziado.

No mesmo parecer, o CES considera que a atenção dada às medidas para responder à crise económica causada pela pandemia é “claramente insuficiente”, descrevendo ainda como “preocupante uma certa ausência da Segurança Social” nestes objetivos e pedindo mais “detalhe de concretização e objetivação dos meios de financiamento”, “sem os quais se torna difícil uma análise mais rigorosa”.