Título: Hamnet
Autor: Maggie O’Farell
Editora: Relógio d’Água
Ano da Edição: maio de 2021
Páginas: 320
Preço: 18€
Há personagens que são capazes de nos acompanhar para sempre. Agnes é assim. A mulher de Shakespeare, que divide o protagonismo e narração do romance de Maggie O’Farrell com o próprio filho, é tão peculiar quanto inesquecível. É através dela, e não tanto através de Hamnet, que O’Farrell desenvolve a narrativa e explora os temas centrais da obra, vencedora do Women’s Prize for Fiction do ano passado e considerada uma das melhores publicadas no Reino Unido em 2020: o amor, romântico e maternal, a perda inesperada e insuperável, o luto, e como esses sentimentos alteram as dinâmicas pessoais. Porque, como em todos os bons livros, Hamnet é muito mais do que a história que conta, como o filho de um famoso dramaturgo morreu precocemente devido à Peste Negra no final da década de 1560: é um retrato da complexa teia das relações humanas.
Mas antes de irmos a Agnes, falemos de Hamnet, o fio condutor do romance. Pouco se sabe sobre o verdadeiro Hamnet além de que morreu na infância deixando uma irmã gémea, Judith. A sua morte foi registada, mas não o motivo. Nas notas finais, O’Farell lembra que a Peste Negra, que se sabe ter existido em Inglaterra no século XVI, não é referida uma única vez nas obras de Shakespeare, nas suas peças ou na sua poesia. A escritora nascida na Irlanda do Norte sempre se questionou qual seria a razão — e Hamnet é fruto dessa especulação. No livro, existem outras especulações. Tratando-se de um trabalho de ficção, este apenas se baseia, de forma muito livre, nos raros factos confirmados sobre a vida de Shakespeare, sobre a qual existem ainda grandes interrogações. Uma delas diz respeito à escrita de uma das suas tragédias mais famosas.
Hamlet conta a história de um jovem príncipe dinamarquês atormentado pela morte do pai, o rei, e obcecado pela ideia de vingança. A peça foi escrita apenas quatro anos após a morte de Hamnet, no ano de 1596, e, tendo em conta a proximidade entre os dois nomes e o facto de tratar questões como o luto e a morte, há muito que tem vindo a ser sugerido que foi inspirada na morte do filho do autor. Dificilmente algum dia será possível confirmar ou não a hipótese (como tantas outras coisas relacionadas com o dramaturgo inglês), mas Maggie O’Farell decidiu explorá-la — no romance, Shakespeare escreve Hamlet para espiar a morte de Hamnet, tal como Hamlet tem de, na tragédia, espiar a morte do pai, cuja vida foi encurtada por um mal tão corrosivo quanto a Peste, a ambição desmedida.
O leitor que pega em Hamnet sabe, à partida, como termina a história (com a morte de Hamnet e a composição de Hamlet), mas não sabe como começa. Esse início ficcionado vai sendo revelado aos poucos, em capítulos alternados que se passam ora no tempo presente, onde Hamnet fica doente, ora no tempo passado, quando ainda não exista. Esse passado é essencialmente o de Agnes. Apesar da doença e morte da criança serem o fio condutor da narrativa, é a história da mulher de Shakespeare que domina todo o enredo. É ela o centro do romance; é para ela que tudo converge. Sem Agnes, não haveria história, Hamnet ou Hamlet. E, descobrimos, não haveria Shakespeare, uma vez que é ela a responsável pela mudança do marido de Stratford-upon-Avon para Londres, onde se afirma como popular autor de peças de teatro e onde se torna o Shakespeare que os séculos eternizaram.
Mas quem é esta Agnes, que a História apagou quase por completo? Maggie O’Farrell diz-nos que cresceu numa quinta na orla de uma floresta sem companheiros de brincadeiras ou amigos além de um falcão, presente de um padre, amigo de sua mãe. Essa morreu quando Agnes era ainda pequena. Tal como a filha, era uma criatura peculiar. Passava os dias entre as árvores colhendo ervas e bagas e teria, tal como Agnes, o dom de prever o futuro e de perceber aquilo que mais ninguém conseguia. A sua morte significou uma reviravolta na vida da filha, que foi criada por uma madrasta que não a suportava. Revoltada, Agnes cresceu com fama de rebelde e alimentando o mito que foi a mãe, procurando eternizá-la na repetição dos gestos que recordava dela (os passeios na floresta, as ervas, as mezinhas). Ao fazê-lo, tornou-se ela própria uma lenda, a mulher cheia de personalidade, indomável, com poderes extraordinários que vagueava sozinha pela floresta com o seu falcão de estimação pousado no braço.
É na luminosa recordação que Agnes tem da mãe, que surge por oposição à escuridão que muitas vezes absorve o seu dia a dia, que é possível encontrar pela primeira vez no romance de O’Farrell o tema do amor maternal. Apesar de o romance de Agnes e William ser central, é provavelmente a ligação entre pais e filhos que é mais marcante e determinante. É esta, aliás, que de algum modo junta duas pessoas à partida tão distantes — a selvagem Agnes e o livresco William, o “professor de latim”. Ambos vivem situações familiares complicadas, com familiares controladores (no caso de Agnes, a madrasta; no caso de William, o pai violento), que os condicionam e os impedem de viver a vida à sua maneira. E ambos encontram um no outro a possibilidade de uma liberdade até então desconhecida, de serem quem são.
O nome “Shakespeare” nunca é referido no livro. A famosa identidade do marido de Agnes nunca é explicitamente revelada, apenas sugerida. William assenta até melhor como personagem secundária do que principal, com quase toda a ação a girar em torno de Agnes e no seu dia a dia, cuja rotina é subitamente quebrada pela doença de Judith. Judith, a mais fraca dos gémeos, tinha vivido sempre à beira do precipício. A mãe sabia-o e procurava afastá-la do abismo com todos os cuidados, mas a criança acabou por adoecer. Agnes e a sogra instalaram-se à sua cabeceira, tentando lutar contra uma doença que, uma vez instalada, poucas hipóteses havia de sobrevivência. Enquanto isso, Hamnet passava despercebido. A mesma doença borbulhando no seu interior, até que, como num truque de magia, troca de lugar com a irmã idêntica e deixa que a morte o leve. Quando a família reparou, era já demasiado tarde.
A dor apodera-se de Agnes, outrora cheia de vida. Incapaz de perceber como é que a doença a enganou assim, levando-a a tomar todos os cuidados com a filha quando era o filho que precisava de atenção, vai afundando na depressão e na apatia. O jardim, que antes cuidava com tanto zelo, vai crescendo desordenado. As tarefas domésticas acumulam-se por fazer. Os clientes que antes lhe batiam à janela em busca de mezinhas vão sendo sucessivamente afastados. As filhas, Judith e Susanna, vão ficando adultas sem que dê conta. O marido refugia-se em Londres, lutando contra a dor que a mulher encarna melhor do que ninguém. O fosso entre ambos alarga-se e a ligação que antes parecia ser indestrutível, sobre uma fratura. Este ciclo é quebrado quando Agnes vê o nome do filho no cabeçalho de um panfleto anunciado a nova peça da companhia de teatro Shakespeare. Para ela, foi como se lho roubassem uma segunda vez, uma sensação que nunca será capaz de perdoar ou esquecer.
Com uma escrita polida, mas poética (as muitas frases isoladas são como versos de um poema) e moderna (O’Farrell não tentou reproduzir o inglês do tempo de Shakespeare), Hamnet é a história de uma mulher invulgar e fascinante. Apesar de esta ter vivido no século XVI, não há nada no romance que faça sentir essa distância temporal, que é encurtada pelo tratamento de temas que são intemporais (não só a morte e o luto, mas também a violência doméstica ou o preconceito contra aqueles que são diferentes) e pelo foco no quotidiano e nas relações familiares. O facto de se passar durante uma crise pandémica, em tanta coisa semelhante à hoje, acentua ainda mais essa sensação de proximidade que torna o romance extremamente atual, o que nem sempre acontece quando se trata de uma obra baseada em factos históricos (ainda que, neste caso, um pouco obscuros). E esse é um dos grandes feitos da autora, juntamente com a construção de personagens tão humanas quanto poderosas e inesquecíveis.
A indomável Agnes achou que podia controlar o futuro. Habituada a saber o que esperar da vida (as suas premonições assim o garantiam), é apanhada de surpresa pela morte do filho, que abala profundamente o seu mundo, a afasta da realidade e a aproxima do abismo da loucura. A dificuldade em lidar com a perda e a incapacidade de fazer o luto, alteram as dinâmicas com aqueles que lhe são mais próximos, cavando um fosso no seu casamento que nunca será capaz de encurtar. Porque há coisas que nunca se esquecem, são inultrapassáveis. As últimas palavras do livro de Maggie O’Farrell, são, por isso mesmo, significativas. “Lembra-te de mim”, diz o fantasma. Agnes nunca esquecerá. E nós, leitores, nunca a esqueceremos.