As críticas não são novas: falta de debate interno, “asfixia democrática”, um “monolitismo castrador”, uma tendência para o “encosto ao poder” e ao PS. O que é novo — ou, pelo menos, que reclamam como novidade — é o peso que têm. Ao contrário da convenção de 2018, o maior grupo de críticos internos do Bloco irá desta vez a votos, pelo que não há termo de comparação com a força que tinham antes, mas já está a usar um argumento a seu favor: o facto de ter conseguido eleger 19,2% dos delegados desta reunião do partido. Os críticos chegaram, por isso, desta vez com mais força ao palco do Centro de Desporto e Congressos de Matosinhos.
Catarina Martins já tinha, aliás, deixado uma resposta preventiva às críticas. Assim que entrou no espaço da convenção, este sábado, numa declaração muito breve aos jornalistas, garantiu desde logo que “em Portugal e na Europa não haverá um partido com tanta capacidade de promover o debate e as diferenças de opinião”. “No Bloco de Esquerda nunca há unanimismos, as convenções são mesmo debates políticos a sério, orgulhamo-nos muito por isso. É muito bom termos 5 moções como temos nesta convenção”, rematou. “Uma guerrilha interna permanente”, lamentou-se mais tarde o deputado João Vasconcelos, sobre as moções não afetas à direção. Mas os críticos discordam.
Os críticos internos da direção de Catarina Martins — que junta, aliás, a maior das correntes minoritárias no Bloco, encabeçada por Pedro Filipe Soares — dividem os reparos à liderança em dois: uns são sobre a organização e democracia interna do Bloco, outros sobre a postura política do partido, nomeadamente na relação com o PS.
Quanto à vida interna, todos os grupos — a moção E, que tem os tais 19,2% de delegados e é subscrita pelos ex-deputados Pedro Soares e Carlos Matias; a moção N, que teve apenas 1,4% e surge de uma divisão da E; a moção Q, que ficou conhecida como a da “ala radical” e tem 2,6% dos delegados; e a moção C, que tem 2,3% e é próxima da Q — estão mais ou menos de acordo: há falta de democracia e de debate dentro do partido, que sofre de um mau hábito de centralização do poder e se arrisca (ou já arriscou) a tornar-se um “partido como os outros”.
Se a moção E garante, no seu texto, que se vive no Bloco um “monolitismo castrador”, a partir do palco as críticas tecidas por Ana Sofia Ligeiro foram duras e incluíram uma espécie de ameaça: “Não hesitaremos no momento em que tivermos de ir por fora reclamar as ideias que nos calarem cá dentro”. Por agora, reclama-se “que não seja coartado qualquer direito à opinião”, o fim da “fulanização e intriga” partidária”, a “desvalorização do debate interno” e, como dizia ao Observador o ex-deputado Pedro Soares, uma centralização do poder que “afasta as bases do partido”.
Os grupos de críticos mais pequenos — todos juntos e somados à E, representam cerca de 25% dos delegados — estão de acordo. Foi o que transmitiu João Patrocínio, em nome da moção Q, apontando um “período de verdadeira institucionalização do partido” e uma maior disponibilidade “para responder à comunicação social” do que para “discutir com camaradas”, criticando aliás a redução da representação das moções na convenção. E as críticas a “carreirismo” e “défice de democracia interna” tiveram eco na intervenção de Américo Campos, da moção C.
Trotskistas, leninistas, estalinistas e “pessoas decentes”
A ideia é clara: para os críticos, as tendências encabeçadas por Catarina Martins e Pedro Filipe Soares, que se enfrentaram na convenção de 2014 e depois se entenderam para partilhar a direção do partido, são responsáveis por ‘tomar’ o Bloco e esvaziar o debate para quem não concorda ou quem não é sequer ouvido, como defendia Francisco Tomás, da moção E: “A maioria dos aderentes está distante, 75% ficou e está à margem desta convenção e da vida deste partido. A maioria não subscreveu qualquer moção. Catarina Martins não teve uma palavra para os aderentes que estão afastados, mas teve para os do PS”. Conclusão? “A maioria de aderentes não conhecemos, não ouvimos, não sabemos o que querem”.
Américo Campos, também da moção C, preferiu antes fazer uma espécie de análise — crítica — de todas as outras moções, com um mix de ataques e desejos de sucesso à direção. Foi um dos momentos mais caricatos deste segundo dia de convenção: classificando as moções da direção e do principal grupo de críticos como vindo de correntes “trotskistas, leninistas e estalinistas”, lançou-se a uma breve análise histórica para concluir que “pessoas decentes” só podem ter aprendido com os dois primeiros e “repudiar” os crimes do terceiro. Perante os protestos na sala, atirou: “Vejo que os estalinistas não querem que eu fale, mas eu vou continuar a falar. De Estaline o que podemos aprender é fazer tudo ao contrário e manter uma cerca sanitária a todos os seus apoiantes”. E acabou a desejar sucesso à direção: será o sucesso de “todos”.
O encosto ao PS e os críticos que não querem negociar
Outra coisa são as críticas com conteúdo mais político, que por vezes foram contraditórias e que mostraram maiores divisões mesmo entre os críticos. Na moção E, a ideia é que o Bloco devia ter sido mais exigente com o Governo e que é preciso “corrigir o percurso político” do BE, que deve assumir que está “zangado” com o Governo e impor-se, por exemplo, em temas como o da legislação laboral. E não foi isso que a direção do partido fez quando votou contra o último Orçamento do Estado e faz agora, ao colocar o emprego como primeira prioridade para as próximas negociações? Sim, e por pressão dos críticos, garantiu Pedro Soares ao Observador — certo é que, com as posições mais recentes da atual direção, parte dos reparos já ficam respondidos.
Se a moção N defende um meio-termo — o BE deve apresentar uma proposta de acordo exigente ao PS, mas com a ameaça de provocar uma crise política se isso falhar –, a Q, conhecida como a “radical”, acredita que o BE nem sequer deve negociar: no palco, João Patrocínio criticou “negociações nos corredores do Parlamento” e disse acreditar que “a geringonça não tenha desaparecido” da cabeça da direção, que “deseja regressar” às negociações.
Que peso real poderão ter estes críticos? Assumirão ou não mais papéis nos órgãos (Mesa Nacional, uma espécie de direção alargada, e Comissão de Direitos) do partido? As respostas serão dadas com as votações de domingo. Será então que a direção, que tem desvalorizado em surdina os críticos — recordando que não conseguiram votações equilibradas em todo o território, que figuras relevantes da oposição interna não conseguiram ser eleitas delegadas ou que desta vez houve maior distribuição de votos — saberá se tem, ou não, um desafio renovado com que lidar.