Intervenção de Catarina Martins

Na abertura da XII Convenção do Bloco de Esquerda.

Daqui repetimos a exigência de justiça neste tempo tão difícil: quem tem lucros não pode despedir. E não aceitamos o falso pretexto da transição energética para o despedimento de trabalhadores. A resposta às crises, à crise pandémica como à crise climática, reclama sim mais e melhor emprego.

O Bloco de Esquerda diz que ainda não foi convidado pelo Governo para reuniões sobre o próximo Orçamento do Estado, mas Catarina Martins começa logo por dizer ao que vem. Um dos recados iniciais do discurso tem a ver com a necessidade de defender “mais e melhor emprego” e não é por acaso — como o líder parlamentar, Pedro Filipe Soares, explicava esta semana em entrevista ao Observador, a prioridade para negociar este Orçamento vai ser “emprego, emprego, emprego”. Pode ser um mau prenúncio para as negociações: o emprego, mas sobretudo as alterações às leis laborais, é um dos pontos cruciais de desacordo entre o PS e a esquerda e um dos grandes argumentos que o Bloco usou para justificar o voto contra no último Orçamento. O PS tinha feito o mesmo em 2019, recusando o novo acordo para uma geringonça 2.0 por causa das condições impostas pelo Bloco sobre trabalho. O nó que nem a geringonça desfez continua por desatar.

Respeitamos as limitações necessárias, e se bem que todos os textos propostos pelos ativistas do Bloco tenham sido publicados para toda a militância, sabemos que  debates entre todas as listas, e em todos os distritos, mas por plataformas digitais, é limitado. Nestes dois dias de convenção estaremos juntos e juntas, cumprindo as regras sanitárias em vigor (…), que podem acompanhar todos os trabalhos desta convenção, mas apenas à distância. A distância e as ausências pesam-nos.

É um primeiro recado para os críticos internos, que nesta convenção aparentam ser mais do que antes — na última, o grupo da Convergência, que agora conseguiu 19,2% dos delegados, não tinha ido a votos. Foram também estes críticos que atacaram a direção nacional pela redução do número de delegados, de cerca de 600 para 300, com o argumento da pandemia — para os críticos, a redução não passou de uma forma de reduzir o debate e, como têm defendido, promover a “asfixia democrática” ou o “monolitismo castrador” no partido. Catarina Martins, que entrou na convenção a defender que o Bloco é dos partidos mais democráticos — na Europa e pelo mundo fora –, aproveita para lhes responder, assumindo que o debate foi até agora “limitado” mas que o partido respeita os cuidados impostos pela pandemia.

Quando tivemos que tomar decisões, não hesitámos, nem poderíamos hesitar. Não fazemos parte do jogo da inconsciência, não somos dos que recusam a emergência por conveniência de discurso partidário, aliás na esperança secreta de que a sua posição nem seja ouvida nem seja aplicada (…). Havia uma emergência e foi preciso atuar em emergência. O Bloco nunca abandonou as prioridades sanitárias e somos por isso o partido de esquerda que pode e deve dizer com confiança a toda a população que sofreu estes meses terríveis: nunca vos faltámos.

A coordenadora do Bloco de Esquerda justifica aqui a decisão de colaborar com o Governo nos primeiros meses da pandemia, nomeadamente com os votos favoráveis aos primeiros estados de emergência (que depois se transformaram em abstenções). Recusando ser “inconsciente” ou recusar “a emergência por conveniência de discurso partidário”, ataca “setores da direita” mas não só: o PCP é contra o estado de emergência, que insiste não ter ajudado a combater a pandemia, e no ano passado organizou um dos primeiros grandes eventos em pandemia, a Festa do Avante!. O Bloco aproveita para se distanciar, garantindo que não “abandona” as prioridades sanitárias e é então “o partido de esquerda que pode e deve dizer” à população: “Nunca vos faltámos”.

Não há aqui nada que se pareça com o congresso do partido da extrema-direita, onde os campeões negacionistas festejam a sua irresponsabilidade e a sua arrogância.

Ainda na parte inicial do discurso, Catarina Martins aproveita para incluir desde logo um ataque ao Chega, depois de falar de “negacionistas” e criticar a gestão que governos como o de Jair Bolsonaro fizeram da pandemia. Depois das muitas críticas ao Chega por eventos que não garantiam condições de segurança, Catarina Martins aproveita para se atirar ao partido de André Ventura. O ataque está longe de ser isolado: um dos pontos da estratégia bloquista para os próximos anos, e que deverá fazer parte das intervenções de alguns dirigentes, é a assunção do confronto com o Chega e a apresentação do Bloco como o partido que não deixa de lado o eleitorado “esquecido” a que o partido de Ventura apela. A luta contra o Chega será uma das bandeiras que o Bloco quererá assumir, aproveitando para pressionar o PSD pelo caminho.

Não vou recapitular o que se passou antes dessas eleições ou as razões para termos assinado um acordo com o PS e termos cooperado com o PCP numa maioria parlamentar apoiada à esquerda a partir de 2015. Já o discutimos nas convenções de 2016 e de 2018 e foi sempre uma grande maioria do Bloco que tomou e manteve a decisão de afastar a direita do poder e de cumprir o acordo para reverter o assalto aos salários e às pensões. Demos aos trabalhadores e pensionistas uma garantia: agora temos força para vos defender. Quando olhamos para trás, sabemos o que essa viragem representou para o nosso povo. Não nos arrependemos de nenhuma dessas decisões.

Catarina diz que não vai “recapitular” os tempos da geringonça, mas acaba por fazê-lo apenas para assegurar que deste lado não há “arrependimentos” quanto às decisões que afastaram a direita do poder — uma garantia que o BE continua a dar: na mesma entrevista ao Observador, Pedro Filipe Soares assegurava de forma “inequívoca” que, havendo uma maioria de esquerda, o BE “nunca contribuirá” para que a direita — especialmente a que agora inclui Iniciativa Liberal e Chega — chegue ao Governo. Há uma ovação clara, mas também alguns braços cruzados na sala: os críticos internos defendem que o BE devia, pelo menos, ter sido mais exigente com o PS nas negociações dos tempos da geringonça.

Como explicou António Costa em entrevista ao Expresso e cito, “um Bloco forte significa ingovernabilidade”, ou, como disseram outros dirigentes do PS, era preciso salvar o governo das pressões da esquerda. Nada foi mais importante para o PS do que atacar a esquerda nessas eleições. Devo dizer-vos que percebo muito bem a queixa de quem sempre viu no Bloco um “empecilho”. (…) Foi com a força da esquerda que o PS cedeu e que o povo começou a recuperar a sua vida.

Catarina Martins, Francisco Louçã e Mariana Mortágua já tinham feito o aquecimento para os ataques ao PS à entrada da convenção, e este foi o primeiro ataque sério lançado a partir do palco, de onde se deverão ouvir muito mais críticas aos socialistas. Com uma satisfação: quando Catarina Martins cita António Costa, quando defende que “nada foi mais importante para o PS” do que atacar a esquerda, quando recorda que houve um deputado socialista (Carlos Pereira) que chegou a referir-se aos parceiros como “empecilhos”, está na verdade a defender que o BE é incómodo para o PS, um discurso que o Bloco acredita ser muito eficaz junto do seu eleitorado e poder, em última análise, impedir que o PS cresça e, no futuro, chegue à maioria absoluta. Por isso, as conquistas do Bloco são apresentadas como imposições ao PS, e os resultados das negociações como cedências do PS. Esse tom deverá marcar toda a convenção.

Não atuamos por ressabiamento, não temos estados de alma, não ficamos zangados pelo facto de o PS ter fechado a porta a uma solução de estabilidade para quatro anos. É a sua escolha, nós abriremos outra porta. Do que não abdicamos é de conseguir já as medidas que são urgentes para o nosso povo.

Mas atenção: se há ataques fortes entre os dois partidos e se o primeiro-ministro chama ao Bloco “desertor” (já antes tinha ironizado, batizando o Bloco como “um partido de mass media“) e fala num “divórcio” à esquerda, para o BE é importante descolar-se dessa imagem de intransigência ou de deserção e garantir que não desiste de tentar chegar a compromissos. Sem ressabiamentos nem estados de alma, Catarina Martins garante que o BE aceitou a escolha do PS — e com ela, sem fechar a porta a negociações, aproveitará para subir a parada e mostrar-se mais exigente nas “medidas urgentes para o povo”.

Assim foi nos dois orçamentos para 2020, o normal e o suplementar: a nossa prioridade, mesmo quando não podíamos adivinhar a pandemia, foi o reforço do SNS. (…) Havia a melhor das razões para a prioridade ao SNS: é que o ponto forte da democracia – o acesso à saúde – está a ser corroído. Nas discussões com o governo ao longo do ano passado, conseguimos bons compromissos para o SNS. Mas não foram cumpridos. Conseguimos compromissos para os trabalhadores informais, que não foram cumpridos.

Esta é uma das chaves para justificar o voto contra no último Orçamento do Estado: o BE saiu do OE2020 aparentemente vitorioso e na altura marcou uma conferência de imprensa para garantir que o Governo teria cedido e iria investir mais de 800 milhões de euros no SNS, que era então a grande bandeira dos bloquistas; mas o balão esvaziou-se e o partido constatou que os tais “bons compromissos”, nessa e noutras áreas, não foram cumpridos. Por isso, ao BE já não basta a “palavra dada” do Governo — outro recado para o PCP, que se tem queixado insistentemente da execução do atual Orçamento, que ao contrário do BE viabilizou. É uma espécie de “eu bem te avisei”, de bloquista para comunista.

Por tudo isto, quando chegamos ao orçamento para 2021, pusemos em cima da mesa quatro garantias de medidas estruturais: carreiras profissionais para o SNS; fim do abuso no Novo Banco; acabar com as leis laborais da troika; e uma política social de combate à pobreza na pandemia, que não deixasse ninguém de fora. Todas são medidas elementares e de bom senso: precisamos de mais profissionais de saúde, quem tem dúvidas? Precisamos de acabar com as formas de despedimento abusivo, quem contesta? Temos que reduzir a pobreza, ou há quem queira aumentá-la?

Bem te avisei, parte II. O Bloco recorda as linhas vermelhas que traçou no último Orçamento e a “clareza” que exigiu então ao Governo e Catarina Martins arranca com outra das grandes linhas narrativas desta convenção: provar que o BE tinha razão e que as medidas que exigia eram razoáveis e não uma prova de intransigência.

O governo anunciou então que recorreria ao Supremo Tribunal Administrativo e ao Tribunal Constitucional, por se tratar de uma “bomba atómica”, sabe-se lá porquê. Como seria de esperar, era fogo de artifício e não recorreu nem a um nem a outro. E o Tribunal de Contas demonstrou agora como o Bloco tinha razão: a administração do banco cobra o que não pode e todos os pagamentos são dinheiro dos contribuintes. Tínhamos razão, mais uma vez. Estamos a ser assaltados enquanto desfilam os depoimentos dos figurões que espatifaram centenas de milhões de euros e que acham que nunca têm que os pagar, confirmando o que o Bloco tem sempre dito: a desigualdade e o privilégio são formas de pilhagem. Desgraçado do nosso país se não tiver quem faça frente a estes irresponsáveis.

E chegamos ao bem te avisei, parte III. São os exemplos a que a coordenadora do Bloco recorre para provar que tinha razão no último Orçamento, agora na prática: é o caso do Novo Banco, que com as audições parlamentares que estão a decorrer durante estas semanas — e em que o partido aproveita para puxar pelo papel de Mariana Mortágua — voltou a agenda pública. Momento conveniente, por isso, para o Bloco tentar demonstrar que era preciso travar as injeções de dinheiro público no banco, apelando ao sentimento popular e falando mesmo em “formas de pilhagem” e num país “desgraçado” se não tiver quem enfrente — leia-se, o Bloco — estes “irresponsáveis”.

Não adiamos, não desistimos. Estamos aqui para a luta toda. Este foi o caminho desde a última convenção. Olhemos agora o futuro e o tanto por fazer. A crise pandémica não travou a crise climática e as desigualdades agudizaram-se. Vivemos dias de urgência. Nesta convenção debatemos caminhos para os próximos dois anos. Propostas diferentes em debate, mas uma mesma responsabilidade: a construção de uma resposta de esquerda para vencer a crise, as crises. Num debate franco, participado, intenso, como sempre fazemos.

O resumo da estratégia está todo aqui: é preciso construir uma “resposta de esquerda”, com um debate “intenso” — também a nível interno — e com exigência, mas também uma garantia: “Não adiamos, não desistimos. Estamos aqui para a luta toda”. A ideia é mostrar-se como a oposição dura ao PS, mas sem nunca transformar essa dureza em intransigência nem recusar à partida negociações com o PS — esse seria o argumento ideal para o Governo insistir na ideia de deserção.