Pedidos de desculpas renovados, assunções de culpa repetidas, e muitas dúvidas ainda a pairar no ar. Assim foi a audição parlamentar de Fernando Medina, que regressou esta quinta-feira à Assembleia da República para responder às perguntas dos deputados sobre o caso de envio de dados pessoais de manifestantes à Rússia.
Medina reiterou que não sabia de nada — e foi criticado por isso –, elogiou a auditoria rápida (e incompleta) que já divulgou — e foi atacado por isso –, colocou a eventual auditoria externa nas mãos dos vereadores da capital e admitiu ter “induzido em erro” os portugueses com as declarações que fez no rescaldo do caso. Foram duas horas e meia de audição em que ainda houve espaço para ataques políticos (e muitas comparações com Jorge Coelho, a propósito da demissão que Medina não admite como solução para o caso).
De quem é a culpa? Medina diz que assume “responsabilidades”, mas não sai
Foi uma das questões em que as bancadas da direita, que chamaram o autarca ao Parlamento, mais insistiram: em que é que se concretizam, afinal, as “responsabilidades” que Medina diz assumir neste caso? Tanto o PSD como o Chega disseram, aliás, que “em países do norte da Europa” ou no resto da “União Europeia” Medina não poderia ser recandidato à Câmara de Lisboa — e PSD e CDS fizeram questão de lembrar repetidamente o exemplo de Jorge Coelho, que em 2001 se demitiu de ministro da Administração Interna após a queda da ponte de Entre-os-Rios, apesar de não ter responsabilidade direta no caso.
Apesar de insistir sempre em que o problema foi a “rotina” e o “funcionamento burocrático” que os funcionários da Câmara de Lisboa cumpriram de forma “burocrática”, embora sem dolo, Medina disse por várias vezes que “assume as responsabilidades” — prova disso, diz, é ter reconhecido o erro e tomado medidas para o corrigir — e voltou a dizer que o caso “não podia ter acontecido”, que a CML “não podia ter feito o que fez” e que os contornos do caso são “graves”. Mas não sai: essa exigência, insistiu, é uma forma de ataque político de quem quer “retirá-lo” de jogo em Lisboa e se dedica para isso a “teses conspirativas e de espionagem” (Carlos Moedas acusou o autarca de estar em conluio com Moscovo).
Medina foi o último a saber?
Outra das questões que mais ocuparam os deputados, que mostraram perplexidade, foi perceber como é que afinal Medina não sabia destes procedimentos, uma vez que não só se praticavam desde 2012 (antes de assumir a presidência da câmara para substituir António Costa) como já tinha havido queixas, em 2019, quando foram enviados dados sobre uma manifestação pró-Palestina a Israel.
Câmara de Lisboa entrega dados de manifestantes anti-Putin aos Negócios Estrangeiros russos
Segundo Medina, esta informação nunca lhe chegou a não ser agora, “pela comunicação social”, quando o Observador e o Expresso revelaram o caso relacionado com a Rússia. E só aí Medina diz ter “intuído” que a prática seria sistémica, e não um erro isolado. Quanto à queixa da Palestina, o autarca garantiu que se referia apenas ao aviso sobre a manifestação e não ao envio de dados concretos — caso contrário, argumentou, todo este debate teria começado precisamente nessa altura.
Medina garante, assim, que nada sabia — o que muitos deputados consideraram muito grave, por si só, e que leva ao próximo ponto.
Gabinete do presidente: uma questão de semântica?
Parte da razão pela qual os deputados se mostraram espantados por o autarca negar saber destes procedimentos era que os mesmos envolviam diretamente o gabinete de apoio ao presidente da câmara. Ora, o que Medina veio explicar foi que este gabinete não funciona por “nomeação”, isto é, é composto por funcionários, como um gabinete de simples serviços, e não é associado diretamente ao presidente, que trabalha com outro gabinete próprio.
A extinção deste gabinete de apoio, a par da exoneração do encarregado da proteção de dados, que tinha pedido um reforço de recursos humanos, é aliás uma das conclusões da auditoria preliminar cujos resultados foram revelados esta quarta-feira — e a decisão também causou espanto aos deputados, uma vez que a manutenção da equipa de proteção de dados tinha sido aprovada já em maio, depois deste caso, por ampla maioria na câmara. Além disso, a direita e o PAN acusaram Medina de fazer do funcionário um “bode expiatório”.
Auditoria externa não está garantida
Outra das críticas é o facto de Medina se ter apressado tanto a apresentar uma auditoria interna, com resultados preliminares, que os dados que lá estão aparecem incompletos, ainda com pouca informação sobre anos anteriores e sem permitir perceber a extensão do problema. Mesmo assim, Medina ironizou — “é a primeira vez na vida que ouço alguém ser criticado por ter feito uma auditoria rápido demais!”.
Então e a hipótese de pedir uma auditoria externa? O autarca demorou a responder, mas já quase no final da audição, e questionado pelo CDS, lá disse que estaria nas mãos dos vereadores de Lisboa decidir se vai existir ou não (se tivesse sido feita agora, argumentou, só estaria pronta daqui a seis meses ou até um ano). Medina só tem maioria no município por acordo com o vereador do Bloco de Esquerda, Manuel Grilo, pelo que se os bloquistas quiserem juntar-se à oposição podem obrigar a que a investigação seja feita.
Medina “induziu em erro”
Se havia muitas dúvidas sobre o caso, um dos problemas eram as aparentes contradições no discurso do próprio presidente da câmara de Lisboa, que explicou que o procedimento vinha do tempo dos governos civis e que, apesar de ordem em contrário, dada por António Costa (num contexto de distribuição de responsabilidades entre várias entidades) em 2013, tinha continuado a ser aplicado sem que se apercebesse disso e, depois, aplicado de forma ainda mais abrangente a partir de 2018. Foi então que os dados, sem qualquer tratamento, passaram a ser enviados sempre ao país que a manifestação visasse e não apenas se o protesto se realizasse nas imediações de uma embaixada (até porque “até o Waze é informado” quando há manifestações, referiu Medina).
Ora Medina tinha dito, em entrevista à RTP1 sobre este caso, que as informações só tinham sido enviadas porque a manifestação em causa, de apoio a Alexei Navalny (opositor de Putin), seria realizada ao pé da embaixada da Rússia e era esse o protocolo. No Parlamento, em resposta ao Bloco de Esquerda, Medina admitiu o desconhecimento destas práticas e reconheceu que assim “induziu em erro” quem o ouviu — na verdade, os dados eram enviados em muito mais casos.
Com ataques políticos à mistura, a audição acabou por ser, muitas vezes, redundante, com poucas respostas além das que a auditoria preliminar (e incompleta) veio trazer. E Medina acabou por resumir o caso assim: “Não podíamos ter feito o que fizemos. Que mais posso dizer?”.