O Governo apresentou quatro propostas para a Estratégia Nacional de Combate à Corrupção (ENCC) e os partidos mais 21 projetos de lei. A discussão aconteceu esta sexta-feira, mas a maioria dos diplomas baixou diretamente para a discussão na especialidade. Coube a Francisca Van Dunem, ministra da Justiça, apresentar as opções do Governo e alertar para que esta não seja uma “oportunidade perdida”, que deixou de fora o enriquecimento injustificado. As críticas à ausência do tema marcaram o debate, as intervenções de todos os partidos e as propostas apresentadas.

A “dimensão preventiva” e a “dispensa de pena” foram os pontos enaltecidos por Francisca Van Dunem na proposta do Governo. Na dimensão preventiva, a ministra reconheceu “dificuldades no plano do direito sancionatório” e enalteceu a necessidade de o sistema judicial ter a capacidade de “impor, em tempo razoável, sanções penais efetivas e dissuasoras”. Esta questão foi apontada como um ponto fundamental que levará a alterações ao código penal, ao código de processo penal, à lei da responsabilidade dos titulares de cargos políticos e altos cargos públicos, ao diploma que prevê a realização de ações de prevenção relativamente a este tipo de crimes e ao código das sociedades comerciais.

Durante o processo o Governo ouviu profissionais de várias áreas — académicos, magistrados, advogados, psicólogos, cidadãos de outras extrações profissionais — com o intuito de conseguir “reunir consensos tão amplos quanto possível” e que “incidam decisões tão ponderadas quão céleres”. A morosidade das decisões, a percepção de insuficiência das taxas de esclarecimento do crime de adequação e efetividade das sanções descredibilizam a reação do Estado a este fenómeno foram apontadas pela governante como questões sob as quais tem de haver atenção. “Temos de passar à ação”, reiterou.

Para que tal aconteça, Francisca Van Dunem explicou que é necessário “melhorar o tempo que medeia entre a ocorrência do crime e o seu conhecimento pelas autoridades responsáveis pela aplicação da lei”, “quebrar o véu de opacidade sob o qual se acobertam estes ambientes criminosos; rompendo os pactos de silêncio”, “aumentar a tempestividade da resposta tanto no inquérito como nas fases processuais subsequentes” e “assegurar a efetividade da sanção penal com o correspondente efeito dissuasor”.

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Também a “dispensa da pena”, que Van Dunem fez questão de referir que já está prevista na lei, deve ser estabelecida como uma prioridade. Trata-se de uma medida que “não só assegura uma resposta adequada do sistema ao arrependimento ativo” como favorece “a queda dos chamados ‘pactos de silêncio’ que se formam entre corruptores e corrompidos”. “Vai-se mais longe e consente-se que a dispensa possa ainda ter lugar se o agente, no decurso do inquérito ou da instrução, decidir retratar-se, confessar os factos e contribuir decisivamente para a busca da verdade e a obtenção da prova”, argumentou. O Governo propõe ainda o regresso ao regime de “aplicação obrigatória da dispensa da pena sempre que a postura do agente se aproxime da do arrependimento ativo” e “não haja lesão do interesse público”.

Contudo, Van Dunem explicou que esta decisão de dispensa é “para todos os efeitos, uma sentença condenatória”. Isto significa, justificou, “que não obsta à perda do produto do crime. Não obsta, também à perda a favor do Estado da diferença apurada entre o património efetivo do agente e o seu rendimento e património declarados”.

“A perda do património, da fazenda, dos haveres que constituem o produto do crime e a impossibilidade de voltar ao desempenho dos cargos que propiciaram a atividade criminosa serão, porventura, os mais rudes golpes que a justiça pode infligir a este tipo de criminalidade”, realçou a governante, havendo uma “sanção acessória de inibição de exercício de cargos políticos, por um período até dez anos, para os titulares de cargos políticos condenados pela prática de crimes de corrupção, cujo comportamento tenha revelado indignidade.”

Sobre um dos temas mais esperados, o enriquecimento ilícito, a ministra assegurou que para responder a essa preocupação existe o “o conteúdo dos diplomas relevantes, nomeadamente a lei 52/2019, em matéria de incompatibilidades e impedimentos, regime aplicável após as cessações de funções. Prisão até 3 anos para a omissão voluntária de dados na declaração única”.

Enriquecimento ilícito: Governo num “ruidosíssimo silêncio” e “fora de jogo”

A ausência de propostas sobre o enriquecimento injustificado marcou a grande maioria do debate. O primeiro pedido de esclareciemnto surgiu por parte do Bloco de Esquerda, pela voz de José Manuel Pureza, que disse que houve um “ruidosíssimo silêncio” com a “ausência da criminalização do enriquecimento injustificado” na proposta do Governo. É, realçou, uma “falta de comparência” que deixa a “estratégia sem ambição de ir ao essencial”. “Escolheu caminho mais fácil”, apontou. Também Carlos Peixoto, do PSD, acusou o Governo de ter ficado “fora de jogo” neste tema. Já André Ventura, do Chega, considera que é preciso explicar porque é que o tema ficou “de fora” da proposta do Governo e que é uma “via verde para o crime”.

Van Dunem justificou-se, ao reiterar que o Governo decidiu “deixar que fosse o Parlamento a pegar nessa matéria e alterá-la”, ao demonstrar que o Executivo não é contra . “O Governo não tem dificuldade em enfrentar qualquer das questões que combate à corrupção implicava”, assegurou a ministra.

No seguimento, a ministra insistiu que a “prevenção” é a “questão central” na proposta do Governo, na medida em que há um “fenómeno enraizado nas sociedades que se alimenta das debilidade da organização e de falta de assertividade normativa”, admitiu. Assim, o objetivo foi sair da “soft low”, como lhe chamou, e criar regime de prevenção da corrupção. “O Governo tem com vontade de mudar este estado de coisas”, apontou a governante. A ministra esclareceu ainda que a  proposta de alteração do Super Ticão vai ser votada no dia 9 de julho.

José Luís Ferreira, dos Verdes, foi o primeiro a apresentar as propostas dos partidos e trouxe para o debate os vistos gold para pedir o fim dos mesmos e dizer que os paraísos fiscais têm de ser vistos como “um elemento estranho” à democracia. “Não é um problema que o Governo português possa resolver sozinho, mas pode fazer pressão na UE”, referiu, um diploma que acabou por ser aprovado no final da reunião plenária. Também o crime de enriquecimento injustificado e a ocultação de riqueza mereceu a atenção do PEV, com o deputado a afirmar que se exige a “criminalização” e a mostrar-se disponível para discussão na especialidade.

António Filipe, do PCP, fez uma viagem ao passado e começou por dizer que o problema do combate à corrupção “não é de hoje, nem de ontem”, não tendo nascido com a “gritaria de demagogos” em 2021. O deputado do PCP recuou ao Governo PSD de Cavaco Silva, em 1994, para lembrar a uma citação comunista sobre a corrupção em que se ouvia que “a situação que se vive em Portugal é “inaceitável (…) e está a ser posto em causa o estado de direito”. Voltou ao passado para lembrar que já houve partidos a tentar debater e tratar este tema e que o enriquecimento ilícito não foi legislado apesar das proposta do PCP, do BE e do PSD. Os comunistas estão de “espírito aberto” no debate, mas consideram fundamental legislar sobre o enriquecimento injustificado.

Pelo Bloco de Esquerda, José Manuel Pureza considera que o caminho feito em Portugal não pode ser ignorado, mas realça que há lições a tirar. O deputado do BE lembra a decisão do Tribunal Constitucional sobre enriquecimento injustificado e disse que “quem quer a sério” legislar sobre este tema “não faz exercícios de retórica inflamada” que sabe que irão ser travados pelo TC, ao frisar que há projetos que estão em cima da mesa que jamais funcionarão, já que “face a dinheiro escondido nunca haverá notificação e portanto nunca haverá crime”. O BE quer uma “larga maioria” porque “não há estratégia séria de combate à corrupção sem criminalização do enriquecimento injustificado”. Na resposta, Isabel Moreira, do PS, pediu que se resista à “perceção de que os políticos são todos corruptos”.

Jorge Lacão, do PS, diz ser difícil “discernir os aspetos essenciais” e o “mérito” das iniciativas. O deputado quis chamar à atenção para o facto de o Parlamento não ir hoje “inventar a roda”, havendo uma resposta ao enriquecimento ilícito num diploma já existente (e também referido na proposta do Governo apresentada pela ministra da Justiça). Lacão recordou o Governo PSD/CDS como um “penoso calvário” e acusou partidos da direita de terem colocado “pau na roda na reforma possível” de ter sido feita em 2019. “Essas propostas são hoje letra de lei”, recordou, frisando que o “derrubar de portas abertas” pode servir “demagogos” mas não a “causa do rigor e da verdade”. “O grau de exigência colocado na previsão dos deveres declaratórios nunca foi tão longe como agora”, apontou ainda o socialista, frisando que projeto do PS não apresenta “rutura” mas uma melhoria. O PS recusa “vender gato por lebre”, acusando o PSD de querer distinguir-se para corrigir os “erros do passado”, ao realçar que “a proposta placebo do PSD se reduz pela redundância a coisa nenhuma”.

Nelson Basílio Silva, do PAN, pede seriedade no tema da corrupção, para “combater abstenção” e para que as pessoas “abandonem populismos”. “Parlamento não pode ficar parado quando o país perde para a corrupção cerca de 34 mil euros por minuto, 8,5% do PIB a cada ano”, apontou o deputado, com os olhos postos no estatuto do denunciante, para o qual o partido propõe um “conceito amplo” para quem denuncia casos de corrupção, com a “proteção de todos os denunciantes, tenham eles ou não uma relação laboral com a
entidade denunciada”.

Pelo CDS, Telmo Correia tomou a palavra para dizer que a “corrupção mina a confiança nas instituições democráticas e põe em causa a democracia” e pediu que o problema não seja ignorado. “Ninguém deve ser automaticamente acusado, mas este não é um problema de caras lavadas ou sujas, é um problema de mãos limpas”, afirmou Telmo Correia, pedindo “equilíbrio” entre as molduras penais, “nomeadamente entre os crimes fiscais e os de sangue”. A questão da prescrição é trazida a debate por Telmo Correia, frisando que quando este é cometido num mandato deve ser “considerado crime continuado“, devendo ser o último ato praticado a definir a prescrição, “evitando situações que conhecemos recentemente”, disse, em referência ao caso de José Sócrates. A perda de mandato e a inibição de exercício de cargos públicos de dez anos são algumas das propostas dos democratas-cristãos, que propõe também que quem está na magistratura de carreira não possa ser candidato a cargos políticos. O CDS propõe ainda o “estatuto do arrependido”, em que se aplique o direito premial, e o estatuto do denunciante.

Mónica Quintela, do PSD, considera que estão a ser debatidas matérias “vitais” em que recusa “demagogias” e pede medidas “concretas e sérias” para travar “este cancro da sociedade”. Em vez de se chamar crimes de “colarinho branco”, Quintela preferia chamar-lhes “crimes de colarinho sujo”. A deputada do PSD explicou que o partido propõe o “aperfeiçoamento do direito premial existente sem nunca descambar na delação premiada proposta pelo Governo”, assim como o aumento das penas, o alargamento dos prazos de prescrição para 15 anos e as alterações no regime de liberdade condicional. O fim dos megaprocessos é ainda um dos pontos sugeridos pelos sociais-democratas, que aproveita a intervenção para criticar a falta de investimento na Justiça.

André Ventura, do Chega, que viu todos os projetos chumbados, apontou ao Governo por dizer que não vai legislar sobre o enriquecimento ilícito por “cortesia”, ao frisar que “se não fosse trágico, era cómico”. O deputado disse que o Governo “falhou”, fala em “separação de poderes” e acusa ministros de irem para empresas que tutelaram. “E o PS diz que não anda a controlar a Justiça”, atirou.

Governo quer “convergência” e espera que esta não seja “oportunidade perdida”

No final do debate, Francisca Van Dunem pediu que não se assista com “complacência” à “ausência de argumentos e decisões substituídas por juízes de suspeição, por processos de intenção, desfocando-nos do foco dos problemas”. “Com essa postura política terão muitos likes, reproduções nos media, sobretudo nos que difundem o populismo mas falham na sua missão e não contribuem nem para a dignificação do sistema político nem para a realização do bem comum”, justificou a ministra.

A governante enalteceu o facto de haver uma “convergência no sentido de alterar a legislação” e disse ser “sobre isso que se deve falar”. Sendo a falta de meios um “problema cíclico”, Van Dunem frisando que esse tema não está em causa, mas pediu que “não haja confusões” e que se discutam as matérias apresentadas em matéria legislativa. Sobre as propostas do PSD, que algumas “reproduzem ipsis verbis as do Governo”, a ministra “não quer discutir quem chegou primeiro ou depois”, mas realçou que “as propostas de 2018 eram uma mão cheia de nada”.

O Governo espera que esta não seja mais uma oportunidade perdida, que seja possível encontrar espaços de consenso neste momento crucial da vida nacional. Chega de palavras, de retórica o país está cansado e o Governo recusa-se a compactuar com estes métodos”, concluiu a governante.