Título: Arquitecto Oliveira Ferreira: das praias de Gaia ao centro do Porto
Autor: Domingos Tavares
Editores: Dafne e Centro de Estudos de Arquitectura e Urbanismo, FAUP
Design: Drop / João Faria
Apoio: Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia
Páginas: 232, ilustradas, hard-cover
Preço: 30 €
Domingos Tavares soma e segue no seu projecto de história da arquitectura portuense feita por um mosaico de monografias autorais, dedicando este álbum a Francisco Oliveira Ferreira (1884-1957). Quem se lembre da atenção que, ano após ano, neste jornal fomos dando aos seus livros sabe do apreço que nos merece como caso raríssimo numa bibliografia portuguesa sem suficiente apreço pela vida das nossas principais cidades, descortinando tanto os modos como elas foram evoluindo ao longo do tempo como identificando os seus agentes e a própria diacronia dos estilos e processos de edificar. Desta forma, é o Porto cidade — e a sua outra banda — que neste trabalho de Tavares uma vez mais se destaca como laboratório consistente da recepção no nosso país de novas tendências geradas na Europa de finais do século XIX a meados do XX, mostrando-nos como ali cada arquitecto se foi deixando influenciar por elas (ou, então, melhor dito, quantas vezes as foi compatibilizando), sentindo o ar do tempo ou seguindo o gosto dos encomendantes ou a especificidade de cada obra ou projecto. Além disso, esclarece inesperadamente quantos impulsos renovadores iniciais derivaram nos derradeiros anos num retorno a modelos e soluções que pareciam ter sido postos de lado para sempre…
Oliveira Ferreira desenhou edifícios com os quais muitas vezes nos cruzamos no centro do Porto, mesmo que só em visita à cidade. Não apenas o do Clube Fenianos Portuenses, na Avenida das Nações Aliadas (vulgarmente, Avenida dos Aliados), ali encostado ao edifício da Câmara Municipal, que aliás precede, e em cuja fachada nascente deu expressão a uma «liberdade conceptual pouco comum entre nós» (p. 155), ou o alargamento da pequena loja primitiva concluído em 1915-25 do muito conhecido Café A Brasileira, na Rua de Sá da Bandeira (actualmente transformado em hotel de cinco estrelas), e «o exemplo mais próximo da versão francesa da arte nova» na cidade (p. 96). Também a Ourivesaria Aliança, a maior e mais requintada loja comercial de pratas cinzeladas e joalharia criativa, cuja extensa fachada com 26 m de extensão «constitui por si só um sinal de luxo e grandeza raros, mesmo na rua mais tradicional e rica dos ourives do Porto» (p. 101), a Rua das Flores, que em breve celebra 500 anos.
Todavia, seria na outra banda do rio Douro, em Vila Nova de Gaia, que o arquitecto ali nascido e amigo muito próximo do colega de ofício Manuel Teixeira Lopes, haveria de fazer algumas das suas obras mais surpreendentes, tão inesperadamente desconhecidas que este livro se torna também um convite directo à sua visitação, prevenida todavia, pois «hoje é um naco de quase nada, perante as transformações operadas naquele lugar, sem respeito ou referência às qualidades originais da obra do artista» (p. 143). Refiro-me ao Sanatório Marítimo do Norte, em Valadares, e à vizinha Clínica Heliantia, nos pinhais de Francelos, duas construções de grande porte — «no trilho das obras da vanguarda europeia» (p. 126) —, a primeira das quais erguida em 1919-35 para «tratamento [helioterápico] de turberculoses cirúrgicas em crianças pobres detectadas nas escolas municipais do Norte» (p. 126), um projecto ambicioso de Joaquim Gomes Ferreira Alves suportado pela sua família com casa bancária própria e por alguns outros filantropos da burguesia portuense. Domingos Tavares não reuniu «informação segura sobre a possibilidade de o arquitecto ter viajado pela Europa com o médico Joaquim Ferreira Alves […] no âmbito da preparação do projecto» (p. 99), mas a vocação homeopática da família Ferreira Alves parece apontar para isso.
Um contínuo norte-sul com 95 m dava máxima operacionalidade a extensas varandas-solário com piso revestido a mosaico hidráulico de pasta a que, dia após dia, acediam e recolhiam dezenas de camas móveis de duas extensas enfermarias com tecto abobadado, cuidadosamente ventiladas e iluminadas, com os correspondentes infantes franzinos em traje muito reduzido que assim se curavam das suas injustas maleitas (v. foto p. 139). O extraordinário propósito deste sanatório benemérito — «instituição temerária» (p. 142) — haveria de inspirar, poucos anos depois (1929), o sonho de uma clínica para adultos, com vocação mais comercial, apenas 600 m a sul e beneficiando de apeadeiro ferroviário e arruamentos novos em folha, antecâmara afinal para uma «futura cidade balnear sanatorial» (p. 170).
A Clínica Heliantia — assim foi chamada — adoptou a flor do girassol no emblema azulejar na sua fachada virada ao poente marítimo, e as fotografias disponíveis (sobretudo as das pp. 176-77 e 180-81) e os alçados cuidadosamente reconstituídos não nos deixam dúvidas acerca da alta qualidade daquele estabelecimento terapêutico que progressos da ciência médica haveriam de fazer declinar doravante. Mas fica o traço inequívoco do «modernismo precoce» (p. 169) e do «pensamento racional e estruturado» da arquitectura de Oliveira Ferreira: «o sentido estético apoiado na formação clássica do equilíbrio, com recurso a uma leitura aberta, valorizando o significado cultural da envolvente, ou […] o valor comercial da paisagem» (p. 185).
Já nesta altura Francisco Oliveira Ferreira era um arquitecto muito solicitado, que tinha feito o jazigo da família Ramos Pinto no cemitério de Agramonte (1919) e o edifício da Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia, e em 1927 comprou um automóvel francês de prestígio (um Darracq; foto p. 62) que ao arquitecto que «procurava constantemente a pressão do trabalho, a ponto de acumular vários projectos importantes em períodos curtos» (p. 60), facilitava bastante todo o vaivém de deslocações entre residência, escritório e obras espalhadas pela região (de sua autoria foram já identificadas mais de vinte residências unifamiliares isoladas, nos concelhos de Gaia e Porto, e algumas outras haverá; p. 57).
Uma dessas casas — e sua obra inaugural — foi a Vila Felicidade, na praia de Miramar, aparentemente bem conservada e que Paulo Catrica fotografou do exterior. Construída em 1912-17, como residência familiar permanente num lote de 2000 m2 em posição privilegiada junto à linha do caminho-de-ferro, tem características que a valorizam enquanto solução arquitectónica para moradias isoladas nas novas urbanidades de beira-mar, com enquadramento paisagístico que lembra as casas de campo inglesas no Hereforshire (p. 74) e o conforto da cidade-jardim. Fotografias, planta e alçados atestam-lhe «algum estatuto na concorrência com outras casas burguesas que se vinham levantando nas praias da Granja e da Aguda» (p. 70), apesar da simplicidade das opções formais, ausência de adornos relevantes, boa economia de meios e aplicação da lógica industrial na arquitectura corrente (guardas das varandas de cimento moldado pré-fabricado, por exemplo), sem simpatia alguma por eclectismo ou qualquer estilo histórico a citar e — mais ainda — sem a presunção de exibir estilo próprio, ou uma «filosofia de autor». «Demonstrava como a racionalidade construtiva não era inibidora de alguma criatividade esfuziante, nem mesmo que a simplicidade conceptual ou a extrema economia de meios materiais era impeditiva da obtenção de resultados da mais alta valia artística» (p. 107).
Cinco anos mais tarde, em 1917, Oliveira Ferreira construiria a sua própria residência na estância balnear de Valadares, vizinha do magnífico Sanatório Marítimo, desenhando-a muito simples, com «o sentido de abrigo mínimo de apoio à vida ao ar livre» (p. 83), depois de ter construído a casa — e consultório, com entrada autónoma — do médico Afonso Carlos Temudo Rangel no centro histórico de Gaia (entretanto derrubada pela «voragem da especulação imobiliária que tomou conta do bairro nas últimas décadas do século XX», p. 75), com evidências de respeitabilidade burguesa que o prestígio social do proprietário impunha. Essa versatilidade, essa inteligência criativa, alcancariam todavia maior expressão no seu projecto todo estilo beaux-arts (1915-16) para o novo edifício da Câmara de Gaia, «um sinal de modernidade bem expresso na obra de Oliveira Ferreira» diz Domingos Tavares à p. 123. Situado irremediavelmente numa esquina, sem terreiro defronte ou praça do município que a distinguisse («praça do município que, verdadeiramente, Gaia nunca teve», p. 111), compensava esta carência com avarandados e alpendres amplos debruçados sobre passeio público adjacente, que «revelam uma ambição maior no sentido de afirmação de dignidade institucional» (p. 123), e atenua a estranheza do estreito portão de rua — afinal, mais próprio duma vivenda particular… — com um pórtico colunado e demais distinta arquitectura do corpo central, com o andar nobre sobreelevado. Oliveira Ferreira também deixou o seu nome ligado ao edifício da Casa Inglesa, a loja de alfaiataria masculina de maior prestígio no Porto, na esquina da Rua de Santa Catarina com a de Passos Manuel, para o qual projectou em 1920-22 três pisos de escritórios comerciais de escassa dimensão, compensados com a máxima fenestração possível (v. foto p. 164).
Fez muitas outras coisas, maiores e menores, como é típico da profissão (e um elenco de obras conhecidas regista no fim do livro). Não recusou sequer desenhar estreitos prédios de rendimento para a Praça da República (antigo Campo do Olival), como o sugestivo prédio n.º 157, em que usando betão armado evoca prédios oitocentistas da zona história da cidade (alçado e plantas, p. 198), ou a «hábil solução de conjunto para obter a máxima desnificação» dum conjunto de três edifícios autónomos contornando Augusto Luso e Oliveira Monteiro, em que «se limitou a reproduzir os esquemas de uma época em que, no Porto, se davam os primeiros passos […] [na] vivência das famílias de classe média instaladas na primeira periferia urbana» (p. 206).
Cada um dá o que pode e tem. «Entre projectos oferecidos, obras interrompidas por tempo largo, concursos sem sucesso e uma enorme desconfiança sobre o valor das linguagens teorizadas ao longo dos tempos incertos, — conclui Domingos Tavares — Oliveira Ferreira percebeu que foram muitos os passos perdidos na sua dedicada vida profissional: uma vida intensa e sofrida, com luta, vitórias e derrotas, mas sempre preocupada em contribuir para a construção exemplar de pedaços das cidades que calcorreou» (p. 225).
Este livro será lançado na terça-feira 29 de Junho, pelas 19 horas, na Esplanada do Cinema Passos Manuel, no Porto (Rua de Passos Manuel, 137)