Dois meses após o acidente, a GNR chamou a viúva do trabalhador atropelado mortalmente na A6 pelo carro oficial do ministro Eduardo Cabrita, ao que apurou o Observador junto de fonte ligada ao caso. A mulher de Nuno Santos não testemunhou o acidente, mas a GNR teve ainda assim interesse em ouvi-la nesta fase. O objetivo foi obter informações sobre a personalidade e comportamentos do marido, numa tentativa de perceber se era ou não expectável algum descuido da sua parte que pudesse ter provocado o acidente. Questionada sobre o desenrolar da investigação e hipotéticas diligências feitas ao carro (que continua nas instalações da GNR de Queluz), a BMW manteve-se em silêncio. O INEM ainda não tem conclusões no âmbito do inquérito aberto para apurar se o socorro foi bem prestado.
As declarações prestadas pela viúva apontaram, no entanto, no sentido contrário ao da negligência, dando conta de que era um homem muito cuidadoso, sabe o Observador. A mulher de Nuno Santos explicou à GNR que o marido sempre foi cuidadoso e que, como chefe de equipa, tinha a preocupação de alertar os colegas para aos carros que iam passando na autoestrada. Logo após o atropelamento, um dos trabalhadores que estava na A6 quando o acidente aconteceu dissera o mesmo ao Observador: que Nuno Santos era muito responsável e que estava sempre a chamar a atenção dos colegas, para terem cuidado com os carros. Este trabalhador, que pediu anonimato, disse na altura ser capaz de pôr “as mãos no fogo” em como não tinha havido descuido por parte da vítima.
A eventual negligência do trabalhador foi, desde o início, a versão apresentada pelo Ministério da Administração Interna que, poucas horas após o acidente — e sem fazer qualquer referência ao segredo de justiça, que tem invocado posteriormente para não responder às perguntas –, emitiu um comunicado no qual garantia que o carro oficial de Cabrita não tinha sofrido “qualquer despiste” e atribuía responsabilidade à vítima, que “atravessou a faixa de rodagem”.
O Observador fez uma reconstituição do acidente com a ajuda de quem estava no local, mas nenhum dos colegas presentes tem certezas quanto ao que a vítima terá ido fazer ao separador central. A hipótese de negligência de Nuno Santos, porém, é afastada por quem trabalhava com ele.
GNR e BMW não revelam se já foram feitas todas as perícias ao carro. INEM sem conclusões sobre socorro no acidente
Certo é que, dois meses após o acidente, ainda não há conclusões que permitam perceber qual das versões — se a do MAI, se a da família e colegas de trabalho — é verdadeira. Continua também sem ser conhecida a velocidade a que seguia o carro oficial do ministro Eduardo Cabrita. O BMW continua, por ordem do tribunal, na posse da GNR: está selado em instalações desta força de segurança militar em Queluz e não em Évora, distrito onde aconteceu o acidente, e onde o caso está a ser investigado.
Questionado pelo Observador, o Comando Nacional da GNR não revela se já foram feitas as perícias necessárias ao carro: diz apenas que não vai acrescentar mais esclarecimentos sobre o caso. Também a BMW, escudando-se no segredo de justiça, não avança se já foi contactada pela investigação para, por exemplo, facultar o acesso ao computador interno do carro — a centralina — e perceber a que velocidade este seguia.
Também sem conclusões está o INEM, uma vez que continua a correr o inquérito interno às circunstâncias em que foi prestado o socorro no acidente. A abertura deste inquérito foi anunciada depois de o médico António Peças, que presta serviço no hospital de Évora e na viatura médica de emergência e reanimação (VMER) deste instituto, ter levantado dúvidas na sua página de Facebook sobre o socorro ao acidente: “O que dizer da atuação do Centro de Orientação de Doentes Urgentes (CODU) do INEM, que ativou a VMER de Évora para o trajeto Évora – Montemor quando o acidente ocorreu no trajeto Estremoz – Évora, o que levou a que a VMER chegasse ao local mais de uma hora depois de iniciar o caminho para o local?”.
Sobre a investigação, sabe-se, para já que, além da viúva, os trabalhadores que estavam na A6 no momento do acidente e que participavam na limpeza da via já tinham sido ouvidos pela GNR. Foram chamados três semanas após o atropelamento, depois de o Observador ter revelado que ainda só tinham sido ouvidos no dia e no local do acidente.
GNR chama trabalhadores que viram acidente na A6. Carro de Cabrita tem seguro válido até 2022
O acidente aconteceu cerca das 13h15 de 18 de junho, ao quilómetro 77,6 da A6, perto da Azaruja, em Évora, no sentido Estremoz-Lisboa. Num comunicado emitido logo após o atropelamento, já com o caso em segredo de justiça — motivo alegado depois disso para não serem dados mais esclarecimentos — o Ministério da Administração Interna esclareceu que a viatura em que seguia Eduardo Cabrita “não sofreu qualquer despiste” e que a vítima “atravessou a faixa de rodagem, próxima do separador central, apesar de os trabalhos de limpeza em curso estarem a decorrer na berma da autoestrada”. Também o MAI não revelou até hoje a velocidade a que seguia o BMW.
O homem de 43 anos terá deixado temporariamente o grupo de trabalho que estava na berma e atravessou a faixa de rodagem até ao separador central. A vítima teria saltado por cima do rail de separador central para atravessar a estrada e regressar à berma, quando foi atingido pelo carro do ministro. Estaria de costas quando a colisão se deu. O corpo terá sido projetado no ar, tendo caído a cerca de quatro metros de distância, na valeta de cimento no separador central.
No comunicado emitido logo após o acidente, o MAI garantia que “não havia qualquer sinalização que alertasse os condutores para a existência de trabalhos de limpeza em curso”. Estas informações já foram desmentidas por fontes da Brisa, a empresa responsável pela manutenção da estrada, que tinha subcontratado a empresa Arquijardim, para a qual trabalhava a vítima — tal como noticiou o Observador. O que dizem os trabalhadores também vai neste sentido: o trabalho de limpeza era feito em andamento, pelo que não era possível alertar os condutores com sinais de trânsito fixos — razão pela qual os trabalhadores eram protegidos à retaguarda por uma carrinha com um sinal luminoso. Além disso, os próprios usavam calças e coletes refletores para serem facilmente avistados — como era o caso de Nuno Santos, a vítima.
As contradições continuam por esclarecer e o que aconteceu ao certo ainda é uma incógnita. Incluindo para a própria família da vítima — o que poderá levar o advogado que a representa a pedir o levantamento do segredo de justiça do inquérito-crime, segundo avançou a revista Visão e confirmou o Observador junto do próprio. O advogado, José Joaquim Barros, já fez um pedido ao Ministério Público para poder consultar o processo. A resposta vai determinar se pede ao Tribunal de Instrução Criminal de Évora que levante o segredo de justiça.
Advogado da família de homem atropelado por carro do MAI quer segredo de justiça levantado