Título: Tornado
Autora: Teresa Noronha
Editora: Exclamação
Páginas: 155
Preço: 16,90 €
Romance de estreia de Teresa Noronha, vencedor da primeira edição do Prémio Maria Velho da Costa, Tornado apresenta-se como uma “longa carta de uma mulher a um irmão que se suicidou.” Capítulo após capítulo, acompanhamos sem grande rigidez cronológica episódios da vida desta mulher, desde a infância em Moçambique, nos anos que se seguiram aos acordos de Lusaka, até aventuras amorosas de uma idade um pouco mais madura. Vamos seguindo o relato que a própria protagonista faz dos diferentes lugares por onde passou, Moçambique, França, Portugal, e sobretudo das encruzilhadas fundamentais do seu percurso. Entre estas, contam-se a relação difícil com a mãe e o pai, por exemplo, ou a descoberta do amor na adolescência, com um professor casado e muito mais velho. Destaca-se sobretudo — como cume do sentimento de desorientação que perpassa todo o livro — o suicídio aos vinte anos do irmão, que é também o destinatário da carta.
Embora não falte matéria de interesse romanesco nesse pedaço de vida que “Tornado” foca, o romance padece de graves problemas narrativos, que tiram força às histórias que o compõem e à existência assombrada que pretende retratar. Em textos teóricos, Flannery O’Connor chamava a atenção para uma tendência comum entre os aspirantes a escritor: carregadinhos de ideias sobre o universo, mas pouco conscientes da especificidade da ficção literária, tendem a dizer aquilo que deveriam tentar mostrar. É claro que este princípio não exclui a possibilidade de aplicações muito diversas, mais ou menos rigoristas, como a leitura de grandes obras literárias permite perceber. Da fidelidade ao concreto que caracteriza a obra da própria Flannery O’Connor à propensão proustiana para polvilhar a narração com abundantes considerandos sobre a vida em geral, por exemplo, vai um mundo de diferenças. Não obstante, e independentemente de haver modos mais secos e modos mais palavrosos de contar histórias, este princípio — segundo o qual a narração deve ser capaz de mostrar ao que vem e não apenas de o dizer — é basilar na arte do romance; se não, para quê gastar tempo a contar histórias, em vez de simplesmente apresentar sinopses, formular ideias ou avançar conclusões? Tornado sofre de um mal que tem a ver com isto. Não se dá o caso de Teresa Noronha não ter uma história interessante para nos contar. Mas somos bombardeados com pensamentos e metáforas a respeito da vida atribulada da narradora, sem que a história consiga corporizar, pelo modo como nos é contada, a hecatombe existencial prometida.
Que um dos problemas de Tornado se prende com a articulação entre o que pretende mostrar e o modo como o diz, torna-se particularmente claro ao considerarmos dois aspetos diferentes do romance.
Um deles é a insistência na magreza da protagonista e no facto de ter uma tez meio-indiana, numa Moçambique polarizada entre os colonizadores brancos e os nativos negros. Estas repetições servem um propósito óbvio, que aliás a autora não esconde: sublinhar um sentimento de não-pertença, uma impressão permanente de se sentir deslocada e “a mais, no forro das coisas”. No entanto, à terceira vez que ouvimos a narradora dizer que pesava menos de quarenta quilos, perguntamo-nos se não seria muito mais eficaz apresentar uma situação em que isso se revele problemático, em vez de debitar a informação; quanto à cor da pele, um episódio forte, em que a herança goesa da narradora lhe trouxesse dissabores, valeria mais do que mil discursos sobre o facto de não encaixar nos tons dominantes.
Um outro exemplo sintomático do desaproveitamento da matéria romanesca de Tornado é a história da Tia Sílvia Escolástica Edeltrudes de Bragança. Obrigada a cuidar da mãe alcoólica durante “os melhores anos da sua vida”, em Goa, esta senhora vai idealizando o homem que a fará conhecer os altos prazeres da existência; mal a mãe morre, decide atirar-se ao seu sonho, casando por procuração com um moçambicano; ao chegar à Terra Prometida depois da travessia oceânica, depara-se com um “senhor baixo e gordo, careca e vesgo”. Trata-se, em potência, de uma boa história, que entrelaça com simplicidade elementos trágicos e cómicos. Poderia servir — qual aparição de um antepassado de mau augúrio — para reforçar uma das impressões-chave do romance: a de que a vida é uma “onda maldita” que não se compadece dos desejos humanos. Só que, logo no primeiro parágrafo da história, somos avisados de que o mui esperado marido de Sílvia era afinal careca e vesgo. Deste modo, ler nos parágrafos seguintes a rocambolesca aventura da mulher que ousou atravessar o Índico em busca de um futuro melhor não é a entusiasmante experiência de suspense que poderia ser, não é uma viagem plena de expectativa rumo a um final que nos surpreenderá enfim com o seu golpe ridículo e melancólico, mas apenas a estafada espera pelo desenlace já conhecido.
Estes dois aspetos, muito diferentes entre si, apontam ambos para um problema recorrente em “Tornado”: ideias que poderiam dar força ao romance são, pelo modo como aparecem no texto, desvitalizadas, tornando-o incapaz de espelhar eficazmente a violência de que pretende dar testemunho.
Em defesa de “Tornado”, poder-se-ia talvez dizer que, tratando-se de uma carta, e de uma carta a um homem morto, não é na estrutura da narração que devemos procurar os seus méritos. Porém, se formos por aí, entramos num problema ainda mais profundo do romance: não conseguir estar à altura dos desafios que se impôs a si mesmo ao optar por uma forma tão sui generis. A opção de construir o romance como uma carta ao irmão ausente corresponde a um artifício de dramatização do relato dessa vida que Teresa Noronha quer explorar; no entanto, não funciona. Como é óbvio, o problema não está na circunstância de ser inverosímil alguém escrever uma carta de 155 páginas a um morto. Há muita boa literatura criada sobre premissas mais inverosímeis. O problema é que a autora não parece ser capaz de encontrar, para essa opção de fundo, uma expressão adequada, que permita exprimir o desamparo e a falta de respostas que justificam conceber o romance como a carta a alguém que já não está cá. Por um lado, há um artificialismo de linguagem, de tendência sentimental, que, em vez de contribuir para pôr em relevo a experiência dolorosa da protagonista, acaba por diminuí-la; por outro lado, como é demasiado evidente que o interesse da narradora está em contar a história da sua vida e não apenas em sondar o gesto trágico do irmão, o modo como se dirige ao morto nunca é — enquanto puro mecanismo ficcional e esquecendo a irrelevante questão da verosimilhança — convincente.
No que diz respeito a questões de estilo, os alarmes da nossa sensibilidade soam logo que, ao espreitar o índice, encontramos um capítulo intitulado “A tração do mar e a traição de amar”. Apesar de a autora dar provas na última página (“Em jeito de epílogo”, o melhor momento do livro) de uma prosa mais contida e de um lirismo mais incisivo, no interior do romance multiplicam-se as formulações arrebicadas, de valor estético questionável, sobretudo quando a irmã se volta de frente para o irmão: “Deixa-me que te conte o que me aconteceu e, depois disso, que o pó que és te seja leve dentro de mim”; “E por ser, também eu, esse solo onde cresces, tenho-te uma raiva infinita, tão grande quanto a impossibilidade de te acolher nele e de te dar finalmente o colo, solo que te faltou”; etc. Um outro caso que ilustra e resume um certo descontrolo das imagens por parte da autora é o da expressão, várias vezes usada, “o ano em que as acácias deixaram de florir.” No primeiro parágrafo há logo uma aparição da dita cuja, que aliás dá título ao capítulo inicial; e nesse primeiro momento a imagem até tem força, tem um encanto enigmático que valida o seu uso. Ao longo do livro, porém, a expressão vai sendo repetida até que “o ano em que as acácias deixaram de florir” se torna um mero substituto de “o ano em que o meu irmão morreu”, substituto esse que já não lhe acrescenta nada — nem enigma, nem surpresa, nem nada; sobra só a mania pseudo-literária de pôr às coisas nomes arrojados. Em suma: nem o estilo é particularmente feliz, nem consegue veicular com precisão aquilo que a vida relatada pede.
Seja como for, se a disposição formal escolhida por Teresa Noronha não prima por uma execução brilhante, não é apenas por uma questão de melhor ou pior gosto na escolha das palavras. É também porque há um casamento complicado entre o centro real do romance (a biografia da mulher) e o interlocutor a quem, em virtude da forma epistolar, o texto nunca pára de interpelar (o irmão morto). Em telenovelas ou em filmes, já todos assistimos a diálogos que se tornam quase cómicos por pela sua falta de credibilidade; um marido que mete na conversa com a mulher informações que ela conhece melhor do que ninguém, ou coisas deste género, em cenas que escancaram diante do espectador, de maneira tosca, a intenção do guionista em mostrar-nos isto ou aquilo. Em Tornado acontece a toda a hora algo de semelhante — com a peculiaridade, neste caso, de estar envolvido um morto. Para nos contar aquilo que nos quer contar, a narradora vê-se forçada a contá-lo ao irmão, que, além de estar morto (o que por si só já levanta desafios suficientemente grandes em termos de credibilidade ficcional), ainda presenciou em vida muitos dos episódios que fazem parte do relato; porquê, sendo assim, contar-lhos a ele, que já os conhece? E porquê submetê-lo — a ele, que é uma personagem com um drama pessoal intensíssimo — à posição de ouvir falar de acontecimentos passados já depois de ter morrido, à obrigação de conhecer os detalhes de uma outra experiência dolorosa que não a sua? Não é, repito, a verosimilhança real que importa aqui. Mas importa que, nos termos próprios da ficção em causa, as escolhas estéticas sejam credíveis e justificadas. Não é o caso, em “Tornado”. Fica a sensação de que o propósito do livro não cabe no fato que lhe vestiram.
Além de ter ganho o Prémio Maria Velho da Costa, Tornado é publicado por uma editora com um catálogo de grande qualidade, a Exclamação, e foi incluído no Plano Nacional de Leitura, o nosso oráculo estatal sobre literatura: três factos que podem aguçar a curiosidade do leitor e gerar a expectativa de um romance sólido. Mas por tudo aquilo que vimos, antes mesmo de se conseguir propor como aquilo que pretende ser — um testemunho pessoal de desorientação, num mundo em que crianças assistem a fuzilamentos na praça pública, as paixões rebentam como mistérios indómitos e irmãos amados decidem matar-se —, o texto colapsa devido às frágeis fundações da sua escrita.