Naquele ano de 2008, quando a crise financeira explodiu, Julinho viu o pai partir para a França. “Estávamos com problemas financeiros. Ele foi para ajudar em casa, se não íamos passar fome”. O miúdo então com oito anos passaria os tempos seguintes com a mãe, alimentando o sonho de vingar na vida: “Qualquer pessoa que vem aqui ao mundo, se a mãe lhe deu tudo, nós também lhe queremos dar tudo. A minha mãe é a minha referência”.

O futebol afigurava-se como o caminho mais provável para o sucesso, mas uma rutura de ligamentos obrigou o extremo do Sintrense Júlio Lopes (página no Zero Zero e tudo) a parar. “Nesse espaço de tempo de recuperação do joelho consegui interagir e entrar na música. Foi a música que me escolheu, basicamente.”

Um disco como quem faz uma cachupa

Julinho KSD entrou na música pela porta dos Instinto 26, grupo nascido em Mem Martins, mais propriamente na comunidade do bairro de Casal de São José, na linha de Sintra. Dele fazem parte Julinho, Kibow, Trista e Yuran, sem esquecer o produtor Fumaxa, laborioso artesão de beats (que o digam Slow J, Papillon, Bispo ou Chyna) com o qual Julinho já tinha posto uma faixa no Soundcloud, tinha então 17 anos, e do qual não abre mão na sua equipa vencedora.

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[“Stunka”:]

O sucesso, esse, viria em 2019 com “Sentimento Safari”, faixa com mais de 11 milhões de views no YouTube, 4 platinas e líder do Top 100 singles da AFP durante semanas. A música fora lançada numa das duas viagens que Julinho fizera a Cabo Verde (2008 e 2019). Partiu anónimo, aterrou famoso.

Quem o ouve a cantar, num flow lânguido e que rola sem tropeções, imagina que o crioulo sempre fez parte da vida de Julinho. Não é de todo verdade, nem é de todo mentira. Se por um lado discos dos Ferro Gaita ou de Jorge Neto passavam recorrentemente lá em casa, por outro o português era a língua que Julinho usava para falar com os pais. “Aprendi crioulo ouvindo música, ouvindo a minha mãe, mas nunca falando”, confessa. Depois, também com a ajuda do crioulo que dominava as ruas do bairro, foi aprimorando o dialeto, “foi-se tornando mais fluente”, e, com toda a naturalidade do mundo, passou a ser a sua forma de expressão na música.

“Com o crioulo quis trazer as minhas raízes para a música”. Dúvidas houvesse, a faixa de partida de Sabi na Sabura entra logo com Ferro Gaita a marcar o tom dos 19 temas seguintes. Há sempre aquela gaita que nos leva para o funaná, o solo de guitarra que nos lembra a coladera, mas a sonoridade de Julinho KSD não se fica por aqui.

Sabi na Sabura, estar bem na vida, pouco mais interessa

O álbum de estreia do músico de 23 anos é uma espécie de retrato do quotidiano de um miúdo que teve de batalhar para agora estar bem na vida, tal como o nome do disco indica. “Faço aquilo que gosto de fazer” e nem o sucesso repentino ou a assinatura de um contrato com a Sony Music lhe deu a volta à cabeça. “Não penso nisso. Prefiro ficar dentro do meu estúdio a trabalhar para não lidar com esse tipo de pressão”.

“16 de abril”, segundo tema do disco e data de nascimento de Julinho, é talvez o mais autobiográfico e introspetivo, carta de apresentação onde fala de ser criança com o Papá na França / Mamã em Casa e onde lança palavras de gratidão por ter chegado o seu momento de “passar a palavra”.

[“Sabi na Sabura”:]

O que se segue é uma hora de afro-house pincelada a trap, auto-tune na voz, Cabo Verde omnipresente, num crioulo mesclado com o português e o inglês, retrato das ruas e de toda uma geração de afrodescendentes que “já consegue valorizar a sua voz” e fazer de Lisboa “uma cidade mais bonita”. “Apanhei um pouco daqui e dali, juntei tudo e fiz uma panela de cachupa”.

“As pessoas vão chegar lá e vão drenar”

Neste cozinhado quente preparado por Julinho, que põe o corpo a dançar sem darmos por ela, há parcerias selecionadas a dedo que apimentam e diversificam o seu sabor. “À medida que fui fazendo as músicas, senti que cada uma tinha um peso, mas que não estavam bem equilibradas. O peso estava todo do meu lado. Então tinha que equilibrar a balança e chamei quem sabia que a conseguiria equilibrar”.

Há um toque de Lo-Fi e kizomba em “Nossa Vibe”, parceria com Edgar Domingos, Richie Campbell a dar o seu cunho do reggae e do dancehall em “Don’t Lie”, Pika, “uma pessoa que está sempre comigo no quotidiano ou no estúdio” a entrar em “Clima Tropical” ou T-Rex e Deezy a trazer o Rap e o R&B para a faixa “Mistura”.

Os Instinto 26 estão lá também, seja com Trista e Yuran a contracenar com Julinho em “Vivi Good”, outra das faixas que rebentou em 2019 e atingiu a tripla platina, ou em “E Ka Nada Dado”, desabafo de quem trabalhou duro na música para agora desfrutar, com damas à mistura, whisky no copo, muito stunka (fumaça) e guita pa nha mama, que “adorou o álbum”. A ela, Julinho dedica diretamente “Mama Ta Xinti”, Olá dona Maria, é só p’a avisar que vitória se aproxima, tema lançado em 2020 e marca de platina – tal como “Conclusão” ou “Stunka”.

[“Don’t Lie”, com Richie Campbell:]

“Nunca tinha pensado em fazer um álbum, ainda estava naquela cena de só lançar singles”, diz lembrando sucessos como “Hoji N’ka Ta Rola” (3 platinas) ou “Hoji em Sa Tá Vivi” (2 platinas), saídos para o mercado em 2019. Mas depois veio a pandemia: “Com a quarentena comecei a mudar o meu pensamento e a achar que precisava de um álbum na minha carreira. Já com os novos sons feitos, juntei também aqueles que já tinha lançado”. O resultado está à vista: álbum de estreia com uma narrativa coesa, desfiada ao longo de uma hora, e que não vive só dos singles – embora esses fiquem imediatamente no ouvido.

“O feedback tem sido bom, mas aposto que vai ser ainda melhor quando as atuações começarem”. Ao vivo, Julinho KSD conta com uma banda nova, “está uma coisa bem organizada e profissional”. O próximo concerto é já no dia 8 de outubro, no Festival Iminente. “As pessoas vão chegar lá e vão drenar. De certeza que não se vão arrepender”.