A juíza tirou-lhe as palavras da boca. “Foi uma experiência muito…“, começava por dizer a ex-assessora da procuradora distrital de Lisboa jubilada, Maria José Morgado, à procura da palavra certa para descrever o facto de as suas passwords terem sido alegadamente utilizadas pelo funcionário judicial José Augusto Silva para aceder a processos do Benfica. “Traumática?“, perguntou a juíza que preside o coletivo que está a julgar o caso e-toupeira. “Sim, traumática“, concordou a magistrada Ana Paula Vitorino, ouvida como testemunha esta quarta-feira naquela que é a segunda sessão do julgamento.

Atualmente a trabalhar no Tribunal da Relação de Lisboa, Ana Paula Vitorino confessou que “ainda hoje” o facto de ter visto as suas credenciais roubadas a “incomoda muito” — e que passou a utilizar duas passwords diferentes. E começou a contar como descobriu:

Nunca me apercebi de nada. Nunca em passou pela cabeça, até ao dia em que a senhora procuradora distrital de Lisboa, a doutora Maria José Morgado me chama, muito nervosa. Era tudo muito misterioso. Perguntou-me acerca da minha disponibilidade para ser ouvida no dia a seguir no DIAP de Lisboa, mas não podia dizer o que era“, recordou.

A magistrada, em relação à qual a PGR chegou a esclarecer contou depois que, no dia seguinte, quando foi ouvida no DIAP, perguntou o que se estava a passar: “O colega que me estava a ouvir explicou-me que alguém tinha acedido às minhas credenciais e com elas tinham feito inúmeros acessos a processos. Fiquei estarrecida”.

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Uma das alegadas toupeiras do Benfica era quem atribuía as credenciais aos funcionários do tribunal. Qual a password? “Benfica”

Ao longo da sessão desta quarta-feira, foram ouvidos funcionários dos tribunais onde trabalhavam os dois arguidos. Uma delas, Maria Cristina de Castro, oficial de justiça em Fafe, contou que era José Augusto Silva, uma das alegadas toupeiras, que criava as passwords para os funcionários acederem ao sistema informático dos tribunais —  alguns funcionárias mudavam-nas depois, outro não. Maria Cristina de Castro não mudou a sua e manteve-se “benfica” durante muito tempo.

Infelizmente, houve um excesso de confiança. Nunca alterei a password que ele criava aos colegas. Eu sabia que ele sabia a minha password e confiava claramente. Confiei veemente nele. Fui irresponsável”, admitiu em tribunal, entre repetidos pedidos de desculpa.

As credenciais de Maria Cristina de Castro foram uma das que terão sido utilizadas para os arguidos acederem a processos relacionados com o Benfica, de acordo com a acusação. Em tribunal, contou como se apercebeu da situação: ” A minha colega telefonou-me a perguntar porque é que eu estava a trabalhar num processo que era dela e eu disse que não estava. Subi as escadas a correr e constatei no meu nome estavam a ser feitas pesquisas por mim, que eu nem sabia fazer. Eu estava ali ao lado e as pesquisas continuavam a acontecer. E não podia ser eu porque estava lá ao lado. Toda a gente viu que eu estava ali em frente ao computador e não estava a fazer pesquisas”, contou. A acusação acredita que era José Augusto Silva quem fazia essas pesquisas, utilizando passwords de colegas.

Bilhetes para jogos, camisolas e vinho verde. O que disse a alegada toupeira do Benfica em tribunal

Antes de terminada a sessão foram ouvidos dois elementos da Polícia Judiciária que estiveram envolvidos no processo e-toupeira. O primeiro, o coordenador João Amado Gomes, começou por apontar que teve uma “intervenção pontual” no caso. Na altura, encontrava-se a fazer uma investigação de corrupção que envolvia funcionários da Segurança Social e detetou “transferências de uma conta para outra de centenas de milhares de euros”. Veio a descobrir que essa conta que recebia essas transferências pertencia ao Benfica — o que o levou a ter uma reunião com o então assessor jurídico do clube, Paulo Gonçalves, “nas instalações da Luz”. O depoimento de João Amado Gomes ficou por aqui: estas não são questões relacionadas com o processo e-toupeira, lembraram os advogados de Paulo Gonçalves.

Já o inspetor da PJ José Marques dos Santos contou que, nas buscas a casa de José Augusto Silva encontrou “material informático”, como “diversos computadores”. E adiantou que participou em várias vigilâncias feitas aos três arguidos. Numa delas, revelou, foi intercetada uma conversa em que “haveria uma promessa” de um lugar de estacionamento no museu Cosme Damião a um familiar de José Augusto Silva. Promessa essa alegadamente feita por Paulo Gonçalves.

Os depoimentos dos inspetores da PJ foram breves, ao contrário do esperado. “Disseram que pelo menos um inspetor da Polícia Judiciária ia falar muito“, ironizou a juíza Ana Paula Conceição que preside o coletivo, antes de dar a sessão como encerrada.

O julgamento já vai na segunda sessão e continua todas as quartas-feiras até início de novembro. Na primeira sessão, o funcionário judicial Júlio Loureiro prestou declarações — foi o único dos três arguidos a falar, para já. Em tribunal, negou que tivesse feito acordo com ex-assessor do Benfica para receber bilhetes e outras vantagens ecomo contrapartida para aceder a casos judiciais relacionados com o clube: “Isso é pura fantasia”.

Este caso ainda tem uma questão pendente que diz respeito ao local da realização do julgamento: um dos advogados de defesa pediu que fosse no Tribunal de Guimarães, mas os juízes do Tribunal de Lisboa recusaram — o que o levou a querer recorrer desta decisão para o Tribunal da Relação. Enquanto se aguarda uma decisão final sobre o local, o julgamento vai arrancar em Lisboa com o risco de poder ser anulado: é que, caso os juízes desembargadores decidam que afinal o julgamento deve realizar-se em Guimarães, todas as sessões realizadas até então podem ficar sem efeito.

Defesa quer dividir caso e-toupeira em dois e julgar um dos funcionários judiciais num processo isolado

Depois de cerca de um ano parado devido a recursos para o Tribunal da Relação de Lisboa e para o Supremo, o caso e-toupeira arrancou no final de setembro julgar três arguidos, depois de a juíza de instrução Ana Peres ter decidido não levar a julgamento a SAD do Benfica por nenhum dos 30 crimes que constavam da acusação. Nem o funcionário judicial Júlio Loureiro — decisão que acabaria revertida pelo Tribunal da Relação de Lisboa.

Estão ser julgados o antigo assessor jurídico da SAD do Benfica Paulo Gonçalves, pelos crimes de corrupção, violação do segredo de justiça, violação do segredo de sigilo e acesso indevido; o funcionário judicial José Augusto Silva vai responder pelos mesmos crimes, a que se junta ainda o crime de peculato; e o funcionário Júlio Loureiro pelo crime de corrupção passiva. De acordo com a acusação do MP, Paulo Gonçalves terá solicitado a estes funcionários judiciais que lhe transmitissem informações sobre inquéritos, a troco de bilhetes, convites e merchandising do clube.