É impossível calcular o número exato de decisões do juiz Ivo Rosa que já foram revogadas pelo Tribunal da Relação de Lisboa desde 2017, mas é certo que já estarão em causa perto de vinte acórdãos de diferentes desembargadores das três secções criminais daquele tribunal superior. Esta quarta-feira, mais um despacho do magistrado do Tribunal Central de Instrução Criminal foi anulado — e num tom bastante severo para com Rosa.
Os desembargadores Augusto Lourenço (relator) e João Lee Ferreira deram razão a um recurso do Ministério Público (MP) e revogaram um despacho de Ivo Rosa, acusando este magistrado de ter praticado um “ato inusitado”, “arbitrário e infundado” que representa uma “evidente e inaceitável ilegalidade”, que ofende de forma “séria” “as regras de competência, hierarquia de tribunais” e que constitui uma “violação” do “caso julgado e do princípio da certeza e segurança jurídica das decisões”, lê-se no acórdão da Relação de Lisboa a que o Observador teve acesso.
Uma derrota em toda a linha da interpretação jurídica restritiva do juiz Ivo Rosa sobre a lei do cibercrime da qual o magistrado do Tribunal Central de Instrução Criminal não desiste, apesar das sucessivas decisões da Relação de Lisboa em sentido contrário (entre outros exemplos, ver aqui e aqui). Derrota que é extensível à equipa de defesa dos arguidos António Mexia e João Manso Neto liderada pelo advogado João Medeiros que fez questão de se opor ao recurso do MP e tem recorrido sistematicamente (e sem sucesso) sobre a junção de emails dos seus clientes aos autos do caso EDP.
O despacho de Carlos Alexandre que Ivo Rosa anulou
No centro do acórdão da 3.ª Secção da Relação de Lisboa, datado de 13 de Outubro, está a decisão do juiz Ivo Rosa de anular um despacho do seu colega Carlos Alexandre que autorizava a junção de várias mensagens de um telemóvel de um diretor da Odebrecht Portugal — despacho esse que já tinha transitado em julgado.
Do ponto de vista prático, o desembargador Augusto Lourenço diz que só a Relação de Lisboa poderia ter anulado o despacho de Carlos Alexandre, o que faz com que Ivo Rosa tenha exorbitado as suas funções (uma crítica recorrente da Relação em relação a Rosa) por assumir competências que pertencem a tribunais superiores, no caso a própria Relação de Lisboa.
Caso Odebrecht. 81,5% de alegadas luvas terão sido pagas durante Governo Sócrates
A história conta-se em poucas palavras. Os procuradores Carlos Casimiro e Hugo Neto investigam suspeitas de corrupção na adjudicação da barragem do Baixo-Sabor por parte da EDP a um consórcio liderado pela Odebrecht Portugal (então designada de Bento Pedroso Construções). Tendo em conta que existem documentos da contabilidade paralela da casa-mãe Odebrecht Brasil que indiciam pagamentos de subornos com o nome de código “Príncipe” relacionados com a barragem do Baixo-Sabor, o MP inquiriu como testemunha Luís Cecílio (diretor financeiro da Odebrecht Portugal) a 5 de novembro de 2020.
Durante a inquirição, os procuradores Carlos Casimiro e Hugo Neto ordenaram a revista de Cecílio e apreenderam-lhe o telefone — ato que não teve qualquer oposição do gestor da Odebrecht, que estava acompanhado por um advogado. Mais tarde, os magistrados promoveram junto do juiz Carlos Alexandre a junção aos autos de várias mensagens de WhatsApp e emails. Para o efeito, marcou-se uma primeira diligência para selecionar tais mensagens que não foi concluída com total sucesso. Carlos Alexandre foi assim obrigado a marcar uma segunda diligência para o dia 8 de fevereiro de 2021 — altura em que os autos voltaram à titularidade de Ivo Rosa por já ter cessado a exclusividade da Operação Marquês.
Uma das primeiras decisões de Ivo Rosa quando retomou a titularidade do caso EDP foi precisamente revogar os despachos de Carlos Alexandre e notificar Luís Cecílio para informar os autos do seu consentimento expresso. Cecílio não respondeu e Ivo Rosa entendeu que tal implicava que a testemunha não tinha autorizado a apreensão do telemóvel e a junção das mensagens.
A decisão da Relação de Lisboa
O desembargador Augusto Lourenço considera que Luís Cecílio não tinha de dar consentimento expresso, sendo claro que a testemunha e o seu advogado não tinham manifestado qualquer oposição no ato da revista e da apreensão — logo, a lei tinha sido respeitada.
Pior, contudo, foi a apreciação que o relator da 3.ª Secção da Relação de Lisboa faz da decisão de Ivo Rosa de anular um despacho de um colega (Carlos Alexandre) do mesmo tribunal. “Nenhum fundamento legal existe para que um juiz de 1.ª instância sindique e revogue o despacho de outro colega do mesmo tribunal, constituindo tal procedimento uma séria violação das regras de competência, hierarquia de tribunais, caso julgado e violação do princípio da certeza e segurança jurídica das decisões”.
A decisão de Ivo Rosa é, na ótica da Relação de Lisboa, “um ato inusitado”, “arbitário e infundado que ofende os elementares princípios” da lei processual penal e que representa uma “evidente e inaceitável ilegalidade” quando o poder jurisdicional se encontrava quanto a ele (especificamente) esgotado”. Isto é, o despacho de Carlos Alexandre a validar a apreensão do telemóvel de Cecílio já tinha transitado em julgado.
Mais: ao declarar a nulidade do despacho do colega, que implicou anular diligências já iniciadas, Ivo Rosa provocou “morosidade processual desnecessária”.
“Só pela via do recurso para este Tribunal [Relação de Lisboa] a decisão anulada pelo juiz recorrido poderia ser sindicada e mantida ou revogada”, enfatiza o desembargador Augusto Lourenço.
Assim, o desembargador Augusto Lourenço ordenou o “envio ao Ministério Público do DVD com as mensagens e comunicações de Luís Cecílio para seleção e junção aos autos das consideradas relevantes para a investigação em curso nos presentes autos”, lê-se no acórdão da Relação de Lisboa.