No day after da rejeição do Orçamento do Estado, a líder parlamentar do Partido Socialista, Ana Catarina Mendes, foi entrevistada na estreia do programa da Rádio Observador, “O Sofá do Parlamento”. Apesar do tom ter subido com o PCP e o Bloco de Esquerda, Ana Catarina Mendes diz acreditar que continuam a existir condições para acordos com a esquerda parlamentar, garante que foram feitos contactos até ao último minuto e já faz apelos ao voto a pensar no cenário de eleições antecipadas. Não tem problemas em pedir maioria para os socialistas (“espero que os portugueses votem maioritariamente no PS”), embora admita que o resultado das eleições possa resultar em nova geringonça.
[Ouça aqui o Sofá do Parlamento e a entrevista a Ana Catarina Mendes]
Com o cenário de dissolução da Assembleia da República em cima da mesa, o que é que é prioritário o Parlamento e o PS ainda fazerem até ao fim da legislatura? A eutanásia é uma das prioridades?
É preciso pegar em todos os diplomas que estão preparados e prontos para ser aprovados e nesses incluo três: a Lei de Bases do Clima, que foi uma proposta que saiu do Grupo Parlamentar do PS, constituindo um grupo de trabalho liderado pelo Alexandre Quintanilha e que dá resposta a uma das maiores emergências que temos que é a questão do clima, não apenas pelas alterações no planeta, mas na alteração de vida e de hábitos das pessoas. Se olharmos para tudo o que está publicado percebemos que se não fizermos uma transição justa são os mais desfavorecidos que vão ser os mais prejudicados com esta revolução. Eu acho que o PS tem nesta matéria um histórico. Sempre que os governos foram do PS a aposta nas renováveis foi muito séria, em particular no governo de José Sócrates. Hoje quando pensamos que 60% da nossa eletricidade vem de energias limpas percebemos que ainda há caminho para fazer. É uma prioridade. A segunda: o diploma do teletrabalho, que se tornou essencial com a pandemia, e julgo que há condições para na próxima semana se aprovar o diploma que também mudará a vida das pessoas nas relações laborais.
É uma tentativa também de salvar uma parte da Agenda para o Trabalho Digno?
Antes dessa agenda, o grupo parlamentar do PS já tinha apresentado a proposta, que é complementar à Agenda para o Trabalho Digno, que fica agora interrompida, mas pelo menos queremos dar este passo, de forma a que as pessoas que recorram ao teletrabalho possam ter os seus direitos garantidos. Por último, a Lei da Eutanásia. Depois do veto do Presidente da República há todas as condições para que possamos dar este passo em frente e julgo que é das matérias mais emblemáticas do ponto de vista dos direitos individuais e deste Parlamento nesta legislatura que agora se interrompe.
E depois desta cisão há condições para fazer acordos noutras matérias?
Eu julgo que sim. Este momento tem que ser visto com a serenidade que se impõe, numa altura em que não saímos totalmente da pandemia e em que as consequências sociais e económicas não se sentiram ainda na sua plenitude e em que ainda estamos a fazer um caminho que permite um crescimento económico assinalável e isso não pode cortar pontes que sempre se fizeram neste Parlamento a propósito desta ou daquela legislação e, de resto, a lei de bases do clima terá o apoio de todos os grupos parlamentares. A lei do trabalho, essa, será feita mais à esquerda parlamentar, julgo que assim será e a eutanásia está na liberdade de cada deputado, pela minha parte votarei a favor.
O Bloco de Esquerda diz que ir para eleições não é uma inevitabilidade, sugerindo a manutenção do atual Parlamento. Sabemos que Marcelo Rebelo de Sousa não o quer, para o PS o cenário ideal é ir para eleições?
Queria primeiro ouvir o Presidente da República, o PS vai ser recebido no sábado, mas o que me parece, a concretizar-se a dissolução da Assembleia da República parece-me evidente que tenha que existir uma clarificação por parte dos portugueses.
Disse na Circulatura do Quadrado que quanto mais cedo melhor. Há alguma data que o PS tenha já na cabeça?
Ainda não estou em condições de o dizer, aquilo que disse foi a minha opinião pessoal. Se houver dissolução o país não pode ficar pendurado à espera da resolução dos seus problemas e precisa que os órgãos de soberania estejam na plenitude das suas funções.
E isto do quanto mais cedo melhor, o PS prefere ir contra Rui Rio do que Paulo Rangel?
O PS tem que estar nestas eleições com a serenidade com que sempre esteve. A afirmar o seu projeto a sua autonomia estratégica, a afirmar-se como o partido que é da social democracia, europeísta e precisa de fortalecer o estado social, os serviços públicos, de dar condições de vida à classe média
Mas isso é o PS, mas nos adversários há diferenças entre Rio e Rangel?
Quem vier da parte da direita terá no PS sempre o combate que se impõe, numa agenda, a da direita, que é totalmente diferente da do PS.
António Costa no discurso de ontem piscou o olho a todo o eleitorado da ‘geringonça’. É aí que o PS tem que ir buscar votos? E para isso vai incluir no programa algumas medidas exigidas pela esquerda?
António Costa fez a leitura que me parece a mais correta e para quem anda na rua, como eu, nota que há um sentimento de frustração, mas há sobretudo um sentimento de tristeza e de incompreensão pelo chumbo deste Orçamento, que trazia resposta no reforço do Estado Social, em mais investimento, nas respostas aos mais jovens e sobretudo numa forte resposta no combate à pobreza infantil. O programa do PS não se desviará, tem inscritas todas as matérias que estavam no Orçamento do Estado.
Mas estes inputs que a esquerda dá algum deles poderá integrar o programa?
Tudo isso já está na nossa Agenda para Trabalho Digno que foi à concertação social. As horas suplementares, a indemnização compensatória por despedimento, tudo isso já está na agenda. O que é absolutamente vital e que fica travado com o chumbo do orçamento é o combate à precariedade, o reforço dos direitos dos trabalhadores, dos rendimentos dos pensionistas e dos trabalhadores e isso é pena.
E nessa sequência acredita que o PCP e o Bloco de Esquerda vão ser penalizados nas urnas?
Acredito que o povo português é muito sábio e saberá fazer a leitura. Da parte do PS só há uma coisa importante: é ter a convicção firme que fez tudo o que está ao seu alcance para chegar a acordo, num diálogo profícuo numas matérias e menos noutras matérias com o Bloco e o PCP mas eu disse esta quarta-feira daquela tribuna e volto a referir que uma negociação é diálogo e compromisso, não pode ser cedência pela cedência e não se pode pôr em cima da mesa o tudo ou nada como por exemplo o Bloco de Esquerda fez.
E se as forças se mantiverem semelhantes depois de eleições antecipadas, o país corre o risco de ficar ingovernável?
Portugal tem demonstrado ao longo dos tempos que um dos seus bens maiores é a estabilidade e por isso estou convicta que das próximas eleições legislativas sairá aquilo que os eleitores determinarem e que gerará estabilidade política para governar.
Portanto uma maioria absoluta daria essa estabilidade? É isso que vão pedir?
Sempre fui muito prudente nisto. Espero que os portugueses votem maioritariamente no PS, mas depois é preciso fazer a leitura do que o eleitorado pediu e perante isso fazer as formações de Governo que têm que ser feitas.
E a Ana Catarina Mendes acha que vai conseguir manter as relações com Pedro Filipe Soares ou João Oliveira como até aqui? Depois das picardias do debate do orçamento…
Acho que sim, as picardias subiram de tom no debate político e das ideias. Não há um tom acintoso, de falta de educação. Há o tom de respeito de uma democracia madura onde todos os pontos de vista devem ser colocados em confronto e onde deve prevalecer a maioria do que os portugueses escolherem.
Foi um erro avançar para esta legislatura sem um acordo escrito? O Bloco de Esquerda bateu muito nisso no debate.
Olhando para trás não acho que fosse o papel que fosse absolutamente essencial. Para mim, que estive no inicio — primeiro como diretora de campanha de António Costa a mobilizar Portugal para que fosse secretário-geral e candidato a primeiro-ministro –, e depois nestes anos todos, nunca o papel foi uma necessidade absoluta porque as pessoas confiam naquilo que discutem. Quando apresentamos os papéis na legislatura anterior foi por uma imposição do Presidente da República da altura, Cavaco Silva que — como reafirmou há pouco tempo –, não acreditava no sucesso dessa fórmula. Felizmente para os portugueses, Cavaco Silva enganou-se nos seus prognósticos e, se olharmos hoje para os papéis que todos assinámos, fomos muito mais além do que estava nos papéis, fomos encontrando respostas fora dos papéis. Não é um papel que faz o cimento da geringonça é sobretudo a vontade política de continuarmos a encontrar nas nossas diferenças pontos comuns para aquilo que é essencial no país.
A extrema-direita pode ganhar algum lastro e fazer parte de uma solução à direita. O PS está preparado para essa ironia da direita não ganhar as eleições mas poder ter uma maioria parlamentar?
Da minha parte, estou preparada para fazer o combate que é preciso fazer a partidos que são xenófobos, racistas e que não trazem soluções ao país mas que apresentam varinhas mágicas e fazem o canto da sereia como se houvesse respostas fáceis para problemas difíceis. O que compete a um grande partido como o PS, que fundou a democracia, que alimenta a democracia é fazer tudo o que estiver ao nosso alcance para encontrar respostas aos salários baixos, à precariedade, às alterações climáticas, ao despovoamento devido à demografia. O que é preciso é que as pessoas encontrem num partido como o PS as respostas, mas as realistas e que as façam fugir das tentações dos partidos mais à direita e mesmo de um PSD que está fragilizado mas que esteve ausente deste debate. Já tinha estado o ano passado e este ano não apresentou uma única proposta, uma única critica construtiva.
Mas as pessoas podem querer mudar, sobretudo depois de Lisboa. Duarte Cordeiro lançou esse fantasma.
Eu levanto o fantasma que não é fantasma. Peço a todos aqueles que se abstiveram nas últimas eleições que possam correr às urnas porque a arma melhor que temos para melhorar a vida de cada um de nós é mesmo o voto. O meu apelo não é apenas para a mobilização do eleitorado de esquerda, é para que o país se mobilize porque votar é mesmo uma alegria e é bom lembrar aqueles todos que perderam a vida, que lutaram para pudéssemos ter liberdade e democracia e que devem ser regadas diariamente, nos nossos confrontos ideológicos, nos debates parlamentares, mas também no dia em que em posso pôr uma cruz no partido que eu quero.
O Presidente da República disse que acredita na viabilização do orçamento até ao último minuto. Até que minuto é que foram feitos esses contactos?
Até ao fim.
Até ontem à tarde [quarta-feira, dia da votação do Orçamento do Estado]?
Até ao fim.
O chumbo deste Orçamento do Estado pode representar o fim de ciclo de António Costa? Em jeito de provocação, Pedro Nuno Santos podia abrir aqui mais caminho à esquerda?
Só não conhecendo António Costa e o seu passado político. António Costa é estruturalmente de esquerda, estruturalmente democrata, estruturalmente um europeísta e só um homem com a fibra do António Costa era capaz de ter construido a solução de governo à esquerda neste país e devemos dar os louros a quem os tem. António Costa liderou esta formação de governo à esquerda, Jerónimo de Sousa deu sinal de que era possível o PS formar governo naquelas condições em 2015 e isso demonstrou ao longo dos tempos que António Costa não se desviou nunca do seu pensamento de esquerda e social-democrata para o país e nunca deixou que a autonomia do PS fosse colonizada, roubada por parte da aliança que fizemos com os partidos mais à nossa esquerda. Aliás, a grande virtude deste modelo foi mesmo que nenhum partido deixar de existir na sua identidade.
Mas pode ser um bocadinho o abraço de urso?
Não. Não perdeu e acho mesmo que António Costa continua a ter todas as condições pelo que fez no país, na credibilidade que conquistou nos seus congéneres europeus, da força que teve para que a resposta da Europa fosse solidária, para, perante uma pandemia, António Costa liderou o país para que pudesse ter os resultados que tem por exemplo na vacinação. Não fosse o empenho de todo o Governo, na aposta no SNS. Não fosse o empenho de esquerda de António Costa em dar condições aos trabalhadores com o layoff, as empresas não tinham beneficiado de apoios durante este período. O que significa sim: um governo liderado pelo PS, de esquerda e europeísta.
António Costa diz que assume esta rejeição do Orçamento como uma derrota pessoal, pergunto-lhe se também sente isso e se falhou enquanto líder parlamentar?
Sinto que fiz tudo o que tinha para fazer enquanto líder parlamentar, mas partilho da mesma frustração de quem ergue este projeto com muita alegria e o vê chegar ao fim, não por falta de vontade política, mas porque à nossa esquerda não o quiseram continuar. Não acho que António Costa deva ter para si uma derrota pessoal. Fizemos tudo o que estava ao nosso alcance, mas nestas coisas há sempre um sentimento de tristeza por não termos feito mais.