Henrique Gouveia e Melo convive bem com os gritos inflamados de quem o chama de assassino à porta dos centros de vacinação, mas a comoção de quem vê nele um “herói”, elogio que lhe foi dirigido amiúde esta terça-feira, pode ser esmagadora. “De certa forma, até estou um pouco farto”, desabafou: “Somos todos heróis aqui, isto não é um feito de uma pessoa só”.
Depois de ter transformado Portugal no país mais vacinado do mundo, Gouveia e Melo não é apenas vice-almirante: é uma verdadeira rock star. E os aplausos e assobios das dezenas de pessoas que se concentraram diante do palco Q&A da Web Summit podiam ser facilmente confundidos com os de groupies como os Beliebers ou os Little Monsters de Lady Gaga.
A primeira pergunta dirigida ao coordenador da extinta task force para a vacinação contra a Covid-19 ilustra bem como Henrique Gouveia e Melo já se tornou um vulto do combate à pandemia: “O meu marido e eu temos três rapazes. Como é que podemos garantir que eles se tornam tão organizados e responsáveis como o senhor?”, questionou uma emigrante natural da Rússia que acabou de receber a nacionalidade portuguesa.
Descobriu-se assim que, além de ter orientado o país no esforço hercúleo de vacinar quase toda a gente contra a Covid-19, o vice-almirante também é capaz de facultar dicas de parentalidade: “Tem de os matricular na escola da Marinha para terem uma carreira militar”, sugeriu Gouveia e Melo. “E têm de ser normais, terem bons sentimentos sobre a comunidade, terem a esperança de fazer algo, não apenas por si mesmos, mas por toda a gente”.
Gouveia e Melo questiona se a estratégia de vacinação em Portugal foi a melhor
A ideia de que os feitos conquistados pela task force que liderou não são apenas mérito de Gouveia e Melo foi repetida várias vezes na intervenção do vice-almirante. A Web Summit descreveu-o como “a estrela da pandemia de Portugal”, mas o vice-almirante insiste que não é “o Super Homem” e, por isso, muitas falhas foram cometidas nos oito meses do processo de vacinação.
O vice-almirante admite até que chega a ter dúvidas sobre se a estratégia que permitiu vacinar mais de 85% da população portuguesa contra a Covid-19 foi a melhor, num mundo em que vários países ainda não tiveram acesso alargado às vacinas: “Todos os humanos são importantes, independentemente do lugar que ocupam no globo. Falo de questões éticas, mas também de estratégia: podemos estar a ganhar a batalha, mas não a guerra. Isto é uma pandemia, não uma epidemia”, insistiu, pedindo uma coordenação entre governos para espalhar as vacinas por todo o globo.
Apesar das reticências, não hesitaria em regressar à liderança se fosse novamente necessário reorganizar o esforço de vacinação para acomodar a distribuição alargada da terceira dose: “Como militar, se fosse chamado outra vez, diria que sim, sem dúvida. Até despir este fato vou obedecer ao Governo. É a minha forma de trabalhar”.
Os três conselhos do vice-almirante para enfrentar pandemias
Questionado sobre quais os segredos de Henrique Gouveia e Melo para conquistar a confiança dos portugueses e assegurar o avanço no processo de vacinação, o vice-almirante partilhou que ajudou “não ser político”: “O Governo selecionou-me, tentei tirar o processo do debate político e cingir-se à racionalidade”.
Mas nem os constantes aplausos que eclodiam no público quando discursava o convencem totalmente que há fatores pessoais que podem ter ajudado: “Se calhar ajudou ser alto ou vestir uma farda, mas deve haver pessoas fora do mundo militar que conseguiriam fazer o mesmo”.
A estratégia de comunicação também foi fundamental: saber comunicar as (poucas) certezas e as (muitas) incertezas, as boas e as más notícias — sempre sem rodeios. E, para Henrique Gouveia e Melo, a “retórica da guerra” ajudou na tarefa: “Explicámos que o vírus era o inimigo e que nós tínhamos de o combater em conjunto. E quem não o fizesse tinha de pensar de que lado da guerra queria estar”, sumarizou o vice-almirante, que repetiu que está a preparar a publicação de um livro com as “lições aprendidas” durante o processo de vacinação.
Mas o ex-coordenador da task force acredita que falta o mais importante: combater as alterações climáticas e o impacto dos humanos na natureza. “É isso que está por trás desta pandemia e que estará por trás das próximas se não fizermos nada”, alertou.