Durante quase 50 anos Beatriz Costa esteve hospedada no Tivoli Avenida Liberdade, hotel que abriu pela primeira vez as portas em 1933 quando ainda se chamava simplesmente Tivoli. Com o passar dos anos, manteve-se um dos clássicos da capital e, pese embora grandes obras de remodelação terem ditado o fim do quarto onde a atriz viveu e morreu, continua a ser palco para recordar a vida e obra da “menina da franja” e da “saloia”. Esta terça-feira, 14 de dezembro, dia de aniversário da vedeta da Revista Portuguesa, o hotel recebe a antestreia do documentário “Beatriz Costa: A Alegria é a Minha Religião”, no Salão Tivoli a partir das 18h.
Beatriz Costa, que morreu aos 88 anos em abril de 1996, fez da unidade de cinco estrelas a sua casa durante décadas (não excluindo o interregno por altura da revolução dos cravos e as tournées que a levaram para fora do país meses a fio). O quarto número 600, no sexto andar, estava sempre “impecavelmente arrumado” e tinha vista parcial para a Avenida da Liberdade, no coração de Lisboa. A cama estava encostada a um canto e a decoração era “bonita”, com prateleiras a expor as “bonecas com cabeças de porcelana” que pareciam gente.
Tantos foram os anos naquela morada, que Luís Duarte, funcionário do hotel desde 1980, ainda se recorda com precisão do quarto e dos hábitos da estrela do teatro e do cinema português. “Ela descia por volta das 12h — não gostava de acordar cedo —, ia buscar o jornal à portaria e sentava-se a ler as gordas em frente à tabacaria e assim ficava até à hora de almoço.”
Por norma, a refeição acontecia no restaurante do hotel — que chegou a ter o nome da atriz em sua homenagem em anos recentes —, à qual se seguia o café no bar. Depois, sentava-se no sofá em frente à tabacaria, no lóbi, para escrever os vários livros de memórias, mas também as crónicas para serem publicadas nos jornais. E se alguém se sentasse no seu “sofá de inspiração”, Beatriz Costa “mudava logo de cara”. Era também aí que recebia amigos, alguns influentes, incluindo o escritor brasileiro Jorge Amado, como se estivesse na sua própria sala de estar.
Para manter a privacidade numa Lisboa que a conhecia por inteiro, “Dona Beatriz Costa” — tratamento de eleição por parte dos funcionários que dura até hoje — preferia andar com a chave do hotel para que ninguém soubesse se estava ou não no quarto (caso a deixasse no cacifo, o veredicto estaria à vista de todos). Claro era também o facto de não gostar de andar sozinha de elevador, sobretudo quando a intenção era subir até ao quarto no sexto andar, tanto que “arranjava sempre maneira de ir alguém com ela”, nem que fosse para carregar um ou outro “saquinho”.
Bebedora de “muitos copos de água”, chegou aos 88 com uma jovialidade atípica, confirma Luís Duarte, cujo primeiro trabalho no hotel foi na pele de um mandarete apto a fazer recados e recadinhos. Passou depois pela receção e hoje, aos 58 anos, está no departamento financeiro. “Na altura as senhoras fumavam muito, mas nunca a vi fumar”, atesta ainda Luís ou “Luisinho”, tratamento preferencial de “Dona Beatriz Costa”. A atriz tinha ainda por hábito ficar à conversa com os funcionários, chegando a dar-lhes conselhos sobre a vida amorosa.
A mulher que gostava de tudo o que era tradição, incluindo touradas, e que passeava com frequência na Baixa da cidade, andava sempre bem arranjada. “Cuidado e limpeza foram coisas que nunca perdeu com o passar dos anos.” Periodicamente recebia visitas dos media e não raras vezes saía na companhia de pessoas oriundas da terra que a viu nascer.
De Beatriz Costa, Luís Duarte ainda tem fotos e também “prendinhas”, como pedras apanhadas na praia onde a atriz desenhou a sua própria cara, incluindo a icónica “franjinha”. À data, a atriz não era a única residente do hotel — havia cerca de 10 pessoas na mesma situação —, mas volvidos tantos anos é talvez aquela que é lembrada com mais carinho. O quarto onde morou pode não ter resistido às grandes obras de 2017, mas há uma suite de 77 metros quadrados com uma varanda virada para a Avenida da Liberdade e para o rio Tejo com o seu nome, e decorada com peças exclusivas do espólio da estrela de “A Canção de Lisboa” ou de “A Aldeia da Roupa Branca“, que se misturam com mobiliário e objetos da época.
O documentário da autoria de Paula Castelar e Henriques-Mateus, realizado por Laurent Filipe, surge 25 após a morte do ícone da era de ouro do cinema português e chega ao pequeno ecrã a 2 de janeiro, na RTP1.