Era uma das grandes figuras da arte contemporânea portuguesa, mas, à parte, fazia da sombra um conforto único na sua Madeira natal, onde desde 1983, de um jardim apaixonado crescia a sua tela tão ao gosto doméstico numa atenção rara à vida quotidiana, perfeita e imperfeita, jocosa, cheia de malícia e de humor mais ingénuo. Lourdes Castro (que morreu este sábado, 8 de janeiro) era uma mulher da sombra e na sombra construiu o seu objeto artístico: tão particular de tão original, tão especial, de tão enraizado numa técnica que da colagem tradicional passou à impressão serigráfica dos objetos e se transformou num traço raro de prática única.

Magistral na forma como se ateve a um modus operandi que desperta de um jogo de claro-escuro, luz e sombra, dia e noite, a artista cresceu ao decidir-se pelo contorno do objeto como mote comum para um trabalho que evolui entre materiais diversos.

O percurso começou na Faculdade de Belas-Artes, em Lisboa, mas foi em Paris, para onde viajou logo em 1958 e onde se instalou ao lado de René Bertholo, seu primeiro marido, que desponta a sua criatividade delicada. Lourdes descobre a montagem em baixos-relevos que dedica a um certo surrealismo tardio, espécie de novo realismo sobre o qual incidem poesia e tipografia, paixões que a Cidade Luz lhe trouxe em forma de livros e livrinhos, de artista, de autor, enquanto no laboratório da “KWY” — revista que funda com Bertholo e com António Costa Pinheiro, Gonçalo Duarte, José Escada e João Vieira, e ainda com Christo e Jan Voss –, dedicava o tempo a experimentar impressões que variavam entre velhas e novas técnicas capazes de misturar matrizes de reflexão muito diversas e que percorriam inovadoras formas de ver arte e ver a arte.

Morreu a artista plástica Lourdes Castro. Tinha 91 anos. As subtilezas da sombra eram o seu tema de eleição

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Se a materialização do objeto começa por ser uma brincadeira entre o real e a sua sombra, passa depois por se dessubstanciar quando a artista projeta e imprime essa mesma sombra através de uma técnica de registo puro e duro, acabando ainda por se diluir mais naquela capacidade rigorosa de realizar o seu contorno.

São pessoas, sobretudo pessoas, cujas sombras Lourdes Castro captura, desenhando esse seu contorno sobre suportes vários, tela, vidro acrílico, tecido bordado. A representação é questionada pela artista desde a sua conceção até ao seu desaparecimento na arte. Em cima da mesa estão as dicotomias entre material e imaterial, físico e espiritual, temporal e eterno.

E da sombra se faz luz, quando, nos anos 60 por demais psicadélicos, modernos por assim dizer, pop em todo o seu esplendor, a artista faz do vidro acrílico transparente um material de eleição capaz de dar nova vida àquelas sombras cada vez mais ténues, de tão etéreas, subtis, as suas sombras de sempre.

Já no início da década seguinte, no ano de 1972, Lourdes Castro constrói uma das suas obras mais emblemáticas e aquela que não obedece exatamente ao mesmo método artesanal, mas a outra técnica comum. Chama-se “Grand Herbier d’Ombres” e as imagens são por si só fotogramas de plantas várias, impressos desta vez pela ação da luz sobre papel fotossensível.

Fotografia, cinema, luz, sombra, ação, imobilização. O que interessa a Lourdes Castro é sempre um momento perpétuo de tempo vivido, boémio ou recatado, libertário, desordeiro, pacífico, revolto, calmo, ordeiro. Em tela ou em performance, em “Sombras” e no “Teatro de Sombras”, que nas décadas de 70 e 80 contou com a colaboração de Manuel Zimbro, segundo marido da artista, com a criação de dispositivos de iluminação e partilhando a autoria de obras como “As Cinco Estações”, 1976-80, e “Linha de Horizonte”, 1981-85, Lourdes Castro convoca a essência do que caracteriza a arte, uma habilidade para preencher o vazio com o vazio cheio de si mesma, arte da representação e do seu oposto.

Sempre com uma liberdade extraordinária e a fazer jus a uma capacidade imaginativa e crítica profunda, a artista madeirense (Funchal, 1930) avalia também o papel da mulher e da sombra numa melindrosa, de tão frágil, analogia menos poética do que real no mundo dominado pelo sexo masculino, mas onde a diferença, lá está, pode constituir uma força viva ainda mais ativa e dominante. A reflexão é sub-reptícia e honesta a um tempo só. Não podia deixar de ser de outra maneira. Lourdes Castro elogia a vida nesta sua obra tão saborosa de contrastes. Num trabalho que não vale sem um e o outro lado. Um desafio de contrários, de unos e duos, de uns e de todos. Para todos.