O número de pessoas em situação de sem-abrigo estabilizou e voltou ao registado antes da pandemia. A garantia foi adiantada à Lusa por várias organizações, depois de um ano de 2020 “dramático” em que os pedidos de ajuda se multiplicaram, sobretudo de famílias.

O diretor-geral do Centro de Acolhimento de Sem-Abrigo (CASA) admitiu à Lusa que nos últimos dois anos houve um aumento em cerca de 40% do número de pessoas que foram pedir ajuda à associação, sobretudo famílias, uma percentagem que chegou aos 75% entre as pessoas sem-abrigo.

“Apareceram pessoas com características novas, muito mais estrangeiros, pessoas que trabalhavam na hotelaria, por exemplo, e que ficaram desprovidas de apoios e foram à procura de ajuda noutros locais”, contou Nuno Jardim, recordando que pela mesma altura houve também mais pedidos de ajuda da parte de reclusos.

De acordo com o responsável, estas pessoas viviam em situações de habitação precária, que em alguns casos podem ser considerados “sem-abrigo com teto”, uma vez que não estão institucionalizados, estão numa casa ou num quarto, mas “muitas vezes é o mesmo que estar na rua porque não tem as condições para poderem ter uma vida minimamente digna”.

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Já no que diz respeito às famílias que pediram ajuda ao CASA, Nuno Jardim disse que se tratou de situações em que as pessoas ficaram sem emprego, por exemplo, que, muitas das vezes, já era precário, viram-se sem apoio e precisaram de pedir ajuda, sobretudo ao nível da alimentação ou do pagamento de despesas fixas, como a água, luz ou renda de casa.

“Que vieram muitas pessoas para a rua buscar alimentos, sim. Buscar apoio, sim. Procurar as associações, sim. Para além do normal”, sublinhou, acrescentando que esta é uma situação que se manteve ao longo dos dois anos.

Para o diretor-geral do CASA, o evoluir da situação irá depender do que “o país consiga fazer em termos socioeconómicos e não da pandemia”, adiantando que a organização apoia atualmente cerca de sete mil pessoas em todo o país, 2.500 das quais em situação de sem-abrigo.

Lembrou que se trata de um problema complexo, que não se consegue resolver com uma resposta rápida, apesar de admitir que a Estratégia Nacional tem funcionado.

Por outro lado, Susana Veiga, assistente social da Legião da Boa Vontade (LBV), afirmou que o número de pessoas em situação de sem-abrigo apoiado por esta instituição se manteve mais ou menos constante nos últimos dois, três anos, ao contrário do número de famílias que procurou a organização por precisar de uma ajuda imediata, sobretudo ao nível alimentar.

De acordo com a assistente, “houve um aumento muito, muito grande” de pedidos de ajuda por parte de famílias, frisando que a associação chega a receber entre três a quatro pedidos por dia, que muitas vezes querem também ajuda para as despesas fixas, uma situação que se tem vindo a agravar desde o inicio de 2020.

Para a responsável, a pandemia foi também a culpada pelo aumento de pessoas sem-abrigo na mesma altura, quando o país se viu obrigado ao confinamento, a economia fechou e muitas pessoas que já estavam em situação de vulnerabilidade e em precariedade laboral acabaram numa situação de sem-abrigo.

A diretora-geral da Comunidade Vida e Paz partilha desta opinião e disse também que o número de pessoas sem-abrigo rondará atualmente o mesmo que se registava antes da pandemia, uma vez que aumentou nos primeiros meses de 2020, mas depois diminuiu graças a todas as respostas criadas.

“Neste momento podemos falar que estamos quase como no início em termos de pessoas que apoiamos e acompanhamos”, adiantou Renata Alves.

De acordo com a responsável, no início da pandemia houve um “grande aumento de pedidos de ajuda”, entre as pessoas que encontravam na rua, as pessoas que tinham recaídas ao nível dos consumos, mas também famílias em situação de grande vulnerabilidade social.

Nessa altura, por volta de final de março de 2020, a associação passou “a distribuir nas ruas 800 ceias, e o número normal era de cerca de 420 antes da pandemia porque havia muita carência por parte das pessoas sem-abrigo e de outras como refugiados, reclusos, ou pessoas que vieram à procura de melhores oportunidades na cidade de Lisboa e que isso depois não aconteceu”.

Dois anos depois, referiu Renata Alves, constata-se o regresso a uma realidade mais próxima do que se vivia antes da pandemia, tendo em conta que a Comunidade Vida e Paz distribui atualmente entre 420 e 460 ceias por dia.

“Deveu-se muito ao facto de terem sido criadas outras estruturas, o próprio Estado criou outras alternativas como os apartamentos partilhados e a ‘housing first’ e permitiu às pessoas [sem-abrigo] terem uma resposta para a sua integração social”, apontou.

Apontou também como preponderante o facto de muitos municípios terem criado soluções temporárias para retirar as pessoas sem-abrigo da rua, tendo em conta a situação pandemia e de saúde pública.

Este facto em particular é apontando por Gonçalo Santos, diretor técnico da CAIS, como uma das possíveis razões para que em determinadas zonas da cidade de Lisboa sejam visíveis mais pessoas a viver na rua, entendendo que esse fenómeno só por si não é indicativo de que o número de pessoas sem-abrigo tenha aumentado.

Gonçalo Santos explicou que, depois de terem encerrados as respostas temporárias para abrigar as pessoas sem-abrigo no início da pandemia, umas foram encaminhadas para outras respostas, outras não quiseram e voltaram a dormir na rua.

Nas palavras do diretor técnico da CAIS, “2020 foi efetivamente dramático” e a realidade não ficou igual com o impacto da pandemia, mas sublinhou que “não haverá mais pessoas em situação de sem-abrigo em Lisboa”.

Defendeu ainda que a estratégia nacional tem funcionado e tem trazido mais recursos no combate a este fenómeno e na integração das pessoas sem-abrigo.

Coordenador da Estratégia para Sem-Abrigo acredita numa inversão do problema

O coordenador da Estratégia Nacional para a Integração das Pessoas em Situação de Sem-Abrigo (ENIPSSA) acredita numa inversão no número de pessoas nesta condição “mais tarde ou mais cedo”, mas recusa contabilizações antes de ter os dados de 2021.

Em declarações à agência Lusa, Henrique Joaquim admitiu que o problema não está resolvido e é complexo, mas, com base nos dados estatísticos mais recentes, o aumento de vagas em projetos ‘housing first’ ou apartamentos partilhados e o reforço das equipas de intervenção local, acredita que a tendência será para uma diminuição do número de pessoas.

“São indicadores que nos mostram que mais cedo ou mais tarde, e talvez mais cedo do que tarde, vamos ter uma tendência de inversão, mas consistente”, defendeu.

Os dados oficiais, que reportam ainda a 2020, indicam 8.107 pessoas na condição de sem-abrigo em Portugal e, segundo o coordenador da ENIPSSA, esta contabilização não trouxe nenhuma variável nova, antes reforçou as características já conhecidas, ou seja, concentração nas duas grandes áreas metropolitanas (Lisboa e Porto), em centros urbanos do litoral, mas também em municípios do Algarve, maioritariamente homens em idade ativa.

De acordo com Henrique Joaquim, o trabalho de recolha para 2021 começa agora a ser feito, o que o leva a dizer que é muito prematuro fazer qualquer tipo de previsão sobre a evolução do problema “porque seria impreciso de certeza absoluta”.

“Precisamos efetivamente de olhar e ter os dados de 2021 e só em função disso falar com mais rigor da pandemia como causa num movimento qualquer que ele seja do fenómeno”, defendeu.

Ainda assim afirmou que os dados recolhidos não vão no sentido de um aumento exponencial do número de pessoas sem-abrigo em 2021, apesar de admitir que possam não refletir ainda o impacto da pandemia e da crise económica provocada pela covid-19.

Segundo o responsável, na sequência da pandemia houve pessoas que ficaram na situação de sem-abrigo temporariamente porque tinham um perfil específico, normalmente ligadas a setores de atividade como a hotelaria e o turismo, com trabalhos precários e condições de habitação também precárias.

“Essas assim que tiveram oportunidade de emprego saíram da condição de sem-abrigo”, sublinhou.

Por outro lado, defendeu que é também preciso “ter cautela” com outro sintoma, em que “muitas pessoas pediram apoio alimentar e associaram logo a pessoas sem-abrigo, mas felizmente não foi verdade”.

“Eram pessoas com necessidades, mas não estavam na carência de habitação”, sublinhou.

Lembrou também que é preciso igualmente “ter muita cautela” em relação ao aparecimento de pessoas a viver na rua em determinados locais, “porque há zonas em que é sazonal”, salientando que uma das características do fenómeno é a mobilidade e que “isso também se verifica a nível micro em alguns territórios”.

“Neste momento, conscientemente, ninguém tem, e de forma racional, dados para dizer nem uma coisa nem outra [que o fenómeno aumentou ou diminuiu]”, defendeu Henrique Joaquim.

Destacou, por outro lado, que o relatório de 2020 já mostra como na área metropolitana de Lisboa tem havido um investimento nas respostas estruturais de habitação, o que levou a que haja menos pessoas sem teto, apesar de ainda continuarem a ser consideradas sem-abrigo, uma evolução que também está a acontecer noutras zonas do país.

Henrique Joaquim sublinhou que as metas podem ser ajustadas, mas os objetivos não serão alterados, destacando que a meta passa por ter entre 1.000 e 1.100 vagas protocoladas para pessoas sem-abrigo em soluções ‘housing first’ ou habitação partilhada e que neste momento se está a meio dessa meta.

Segundo o responsável, entre os projetos protocolos há uma taxa de ocupação de 80%, com cerca de 500 pessoas sem-abrigo neste tipo de respostas, dispersas pelo país.

Por outro lado, apontou que tem havido um reforço das equipas de intervenção local, para que todas as pessoas tenham um técnico gestor, e adiantou que há núcleos locais que dão conta de que a meta já está nos 100%.

Disse ainda que continuam a ser reforçados os apoios a projetos que garantam a integração das pessoas sem-abrigo, nomeadamente no mercado de trabalho.