Constrangida pela pandemia, mergulhada numa cidade gelada, abandonada pelas amigas celebridades e limitada a encontros virtuais. Assim parecia estar condenada a Semana de Alta Costura que habitualmente traz ainda mais brilho a Paris no fim de janeiro. Mas a Moda não se contenta com prognósticos e não alinha com pessimismos, gosta de surpreender e ser um motor de mudança. O governo francês anunciou que começaria a levantar restrições da pandemia a 2 de fevereiro e esta Semana de Alta Costura primavera/verão 2022 estava decidida a assumir um regresso à normalidade.
Entre os dias 24 e 27 de janeiro foram 29 as casas de moda inscritas no calendário oficial da semana de Alta Costura. Giorgio Armani avisou que iria cancelar o seu desfile, algumas marcas optaram ainda por apresentar as suas coleções em formato de vídeo, mas muitas regressaram ao tradicional desfile. Com o distanciamento social entre os convidados, as máscaras postas e os cenários montados, até as celebridades (europeias e americanas) enfrentaram os desafios da Covid-19 e marcaram presença. Afinal, a Alta Costura é aquele patamar da moda onde (quase) tudo é possível. A criatividade e a habilidade técnica desafiam-se mutuamente e quem ganha é quem assiste ao espetáculo.
No entanto, a vontade de voltar à normalidade pré-pandemia não representa um regresso ao passado. Se o mundo mudou, os clientes e os designers também. As regras do jogo mantêm-se, mas os jogadores adaptam-se. Escolhemos seis desfiles e coleções que se destacaram e nas quais, respeitando o alto padrão de qualidade e criatividade que a Alta Costura exige, é possível traçar novos objetivos para o futuro, como fizeram a Valentino e a Fendi; fazer de uma coleção de moda um ponto de encontro artístico multifacetado, como fizeram a Chanel e a Dior; reinventar a própria marca, como Schiaparelli e Jean Paul Gaultier.
Chanel
Dias antes do desfile já a casa Chanel lançava nas redes sociais teasers, em vídeo e imagens, que deixavam antever que nos levaria para o universo equestre no seu desfile de Alta Costura primavera/verão 2022. No entanto, nada fazia esperar que fosse mesmo um cavalo a abrir a passerelle, montado por Charlotte Casiraghi, embaixadora da casa no papel de musa amazona. Virginie Viard, a designer ao leme da maison Chanel, criou um quarteto fantástico com o artista francês Xavier Veilhan, o compositor Sebastien Tellier e Charlotte Casiraghi e o resultado foi o desfile desta terça-feira, dia 24. Veilhan foi o primeiro artista contemporâneo a quem a marca entregou a criação do espaço do desfile e, tal como Viard, é um apaixonado por cavalos. Os percursos equestres e caninos, bem como a arquitetura de percursos de mini-golf, serviram de inspiração para a criação desta passerelle em jeito de passeio pelo meio da audiência. Uma vez que o Grand Palais, a tradicional morada dos desfiles Chanel, está em obras, este teve lugar no Grand Palais Éphémère, a estrutura temporária junto à Torre Eiffel.
Falta, claro, falar da roupa. Virginie Viard explicou que a geometria das formas do espaço a fez pensar em “contrastes, uma grande leveza e muita frescura”, o que se traduziu em “vestidos etéreos que flutuam como se estivessem suspensos”. E ainda “muitos folhos, franjas, macramé, renda, tweeds iridescentes, botões joia coloridos”. Toda a coleção partilha uma estética inspirada numa mistura entre as décadas de 1920 e 1980. Não faltaram as peças em tweed, como os casacos, as saias e os vestidos, e os clássicos sapatos em dois tons, mas a grande aposta foram, como a a designer avançou, os vestidos que combinavam tecidos leves com os trabalhos artesanais de bordados e aplicações dos ateliers parisienses que a Chanel agrega.
Dior
Maria Grazia Chiuri gosta de trazer arte e artesanato para as suas coleções. E desta vez foi buscar à Índia a sua inspiração e também os parceiros de trabalho para esta coleção. Na sala do desfile as paredes estavam preenchidas com obras dos artistas Madhvi e Manu Parekh, nascidos em 1942 e 1939, respetivamente. E para a coleção, coube aos ateliers Chanakya e à Chanakya School of Craft, em Bombaim, reinterpretar a linguagem destes artistas através de bordados, que nesta coleção não se limitam a ser decorativos. Para a Dior, a essência da Alta Costura é vestir o corpo, escreve a maison em comunicado. E é por isso que peças estruturadas e tecidos fluidos seguem as linhas do corpo e acompanham os seus movimentos. Nesta coleção a paleta de cores resume-se a preto e tons neutros, deixando o destaque para os brilhos, plissados e claro, bordados. Através destes, também as meias ganham destaque e se tornam agregadoras do look.
“O atelier – onde cabeça e mãos trabalham em concerto – é, simultaneamente, um instrumento e um local de experimentação; um órgão vivo onde o savoir-faire e o savoir-être se encontram e evoluem, no decurso de uma colaboração que reafirma constantemente a linguagem mágica e científica que é a Alta Costura.” Assim defende a casa francesa a importância das parcerias que chamam à Dior artistas de áreas distintas da moda, e que têm sido uma grande aposta, sem nunca comprometer os códigos e a herança da marca. Também nesta coleção a feminilidade e a graciosidade se mantêm uma assinatura Maria Grazia Chiuri.
Valentino
Pierpaolo Piccioli, diretor criativo da casa Valentino, atirou para a passerelle dois temas com os quais a moda tem uma relação de amor/ódio: a idade e os diferentes tipos de corpo. Sem medos, o designer fez da coleção “Anatomy of Couture” um elogio à mulher, à moda e à beleza da diversidade. Piccioli explicou que quando se faz uma coleção de Alta Costura, há uma modelo no atelier e é sobre o seu corpo que são construídas todas as peças, que depois são adaptadas às modelos que as vão desfilar. Desta vez alterou as regras do jogo e esta coleção teve 10 modelos com diferentes tipos de corpo no atelier. Segundo a própria marca explica “alterar o processo, e no entanto, mantendo a procura da beleza e da graciosidade intacta, um gesto de nobre rutura, de abertura poética é afirmado, um que dá dignidade ao indivíduo ao substituir a realidade que inclui pela abstração que exclui”.
Numa apresentação intimista, as modelos desfilaram por salas de de um espaço na Place Vêndome e o resultado, apesar das novidades, mantém-se fiel aos códigos de Piccioli. O designer, que tem uma capacidade única para fazer o luxo parecer confortável e descontraído, envolveu os corpos das modelos em drapeados, folhos e ricos bordados. Mas também houve vestidos que lembram o clássico look da passadeira vermelha de cinema, a elegância de um vestido comprido que segue as linhas do corpo e com uma só cor.
Schiparelli
Ao refletir sobre esta coleção de Alta Costura, Daniel Roseberry, o criador ao leme da casa Schiaparelli, achou que o que seria entusiasmante nesta altura seria a contenção. Por isso não apostou nem em cor nem em volume, mas sim num jogo de preto, branco e dourado, que definiu não como “um regresso ao básico, mas um movimento na direção do elementar”.
Foi criado um ouro especialmente para a marca, o tom levou algum tempo a aperfeiçoar, e está presente através de inúmeras peças muito especiais. Estas foram trabalhadas por artesãos, esculpidas em barro ou espuma, e dos seus moldes saíram os acessórios que vemos no desfile, cobertos com folha de ouro de 24 quilates e bordados com cristais da década de 1930. O desfile teve lugar no Petit Palais e as peças de roupa negras são tão esculturais como os acessórios dourados. Numa marca que tem o surrealismo na sua essência, esta coleção leva-nos antes para uma inspiração planetária, sempre feminina e, por vezes, atrevida. Roseberry disse que a moda o emociona e as suas coleções continuam, certamente, a emocionar muitas pessoas.
Jean Paul Gaultier
Respeitando o projeto da marca Jean Paul Gaultier de ter colaborações com outros designers, foi anunciado em setembro de 2021 que esta coleção de Alta Costura ficaria a cargo de Glenn Martens, o diretor artístico da marca Y/Project e da Diesel. O designer belga é o segundo a embarcar nesta aventura e mergulhou de cabeça na herança de Jean Paul Gaultier. Porque criar novidade e irreverência nesta marca não é fácil, o fundador fez da surpresa um elemento chave da sua carreira.
Martens criou 36 looks onde encontramos os códigos Gaultier, mas reinventados. Como é o caso das riscas azuis e brancas, aqui cobertas de corais bordados, o efeito trompe -l’oeil (engana o olho) criado à volta do corpo, o envolver o corpo em tiras num efeito múmia, os corpetes ou os vestidos com drapeados em chiffon e, claro, muito drama, conseguido com volumes, cores intensas e texturas. Só os clientes e fãs de Gaultier o dirão, mas parece que Martens foi uma boa aposta.
https://www.youtube.com/watch?v=loyHqBn7QcE
Fendi
Kim Jones, diretor artístico da Fendi e da Dior Homme, apresentou a sua primeira coleção de Alta Costura ao vivo e, de facto, os seus 30 looks merecem ser vistos de vários ângulos e em movimento. A musa volta a ser Roma, a cidade casa desta marca e a capital de um império com uma rica herança artística, que se reflete em estátuas pintadas à mão no tecido, nos vestidos drapeados ou nas linhas retas que se inspiram na arquitetura.
Porém, para esta coleção, Kim Jones trouxe também a ficção científica e o resultado da mistura é uma combinação de técnicas antigas e modernas e uma coleção com um ar futurista. A paleta de cores é contida, e conta com o preto, azul escuro, branco e vermelho, e ainda com os brilhos dos bordados. Segundo a própria Fendi, esta coleção representa “de uma só vez passado, presente e futuro”. As joias são peças assinadas por Delfina Delettrez, joalheira e filha de Silvia Fendi.