— Eu não estou em condições de prestar declarações, diz Ricardo Salgado

— Porquê?, pergunta o juiz Francisco Henriques

— Foi-me atribuída uma doença de Alzheimer

Não entrou pela porta principal do edifício A do Campus da Justiça, mas, quando os jornalistas entraram na sala 1 do quinto piso, Ricardo Salgado estava já sentado no banco dos arguidos. Acusado de três crimes de abuso de confiança num processo separado do caso Operação Marquês, o antigo presidente do BES fez esta terça-feira a sua primeira aparição no julgamento em dia de alegações finais. A leitura do acórdão ficou marcada para dia 7 de março, às 16h.

O juiz que preside ao coletivo aproveitou para o identificar. Ricardo Salgado disse o seu nome completo, o do pai, o da mãe, assim como a sua data de nascimento e a sua naturalidade. Mas quando o magistrado lhe perguntou se queria prestar declarações e que tal até poderia beneficiá-lo, Salgado respondeu que não estava em condições para isso, porque lhe tinha sido diagnosticada doença de Alzheimer. “Eu não estou em condições de prestar declarações. Foi-me atribuída uma doença de Alzheimer”. Um argumento já invocado pela defesa para suspender o julgamento,  mas que não convenceu os juízes.

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Antes de o procurador Vítor Pinto começar a falar, Salgado interrompeu para pedir que o magistrado falasse mais alto. “A minha audição está muito má”, justificou. O juiz autorizou que se aproximasse mais. Ricardo Salgado, que tem agora 77 anos, levantou-se e demorou algum tempo a chegar à cadeira que lhe reservaram, revelando já algumas dificuldades de locomoção.

O Ministério Público pediu que o tribunal condenasse Salgado a uma pena única de dez anos de cadeia pelos três crimes de abuso de confiança por considerar que existem prova documental suficiente e que a tese da defesa não convenceu. Mais. O procurador Vítor Pinto diz mesmo que Salgado não mostrou qualquer arrependimento.

“Os montantes em causa — entre os 2,75 milhões e os 4 milhões de euros — são quantias que a maior parte do portugueses não conseguirá auferir durante uma vida de  trabalho”, lembrou o magistrado, sublinhando que Salgado tinha obrigações enquanto administrador do BES.

Ricardo Salgado chegou à fase de instrução do caso Marquês sem a pedir e acusado de 21 crimes, entre os quais corrupção ativa, branqueamento de capitais, falsificação de documento e fraude fiscal qualificada. Mas o juiz Ivo Rosa decidiu levá-lo a julgamento apenas por três crimes de abuso de confiança e num processo autónomo do do ex-primeiro-ministro José Sócrates e do empresário Santos Silva. Um julgamento que era para ter começado e junho, mas que ainda foi alvo de dois adiamentos e só arrancou em julho.

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O juiz de instrução considerou haver provas suficientes que indicam que a sociedade offshore Espírito Santo (ES) Enterprises, o chamado “saco azul do BES”, com várias contas bancárias no Banque Privée Espírito Santo, na Suíça, era “controlada pelo arguido Ricardo Salgado e utilizada pelo mesmo para movimentar fundos e realizar pagamentos sem que a sua origem, destino e justificação fosse revelada”.

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Um dos crimes de abuso de confiança de que Salgado é acusado deve-se a uma transferência de 4 milhões de euros para a Savoices, uma outra empresa offshore da qual o ex-líder do BES era o beneficiário, outro às várias transferências para o ex-líder da PT Henrique Granadeiro (que terá transferido depois 4 milhões de euros para uma conta no banco Lombard Odier aberta em nome de uma sociedade offshore chamada Begolino, que pertence a Ricardo Salgado e à sua mulher) e o terceiro crime refere-se a 2.750 mil euros saíram do BES Angola, passaram por uma conta do empresário Hélder Bataglia, e acabaram na Savoices do próprio Ricardo Salgado.

Defesa pede absolvição e atenção ao estado de saúde de Salgado

A defesa de Salgado, na voz do advogado Francisco Proença de Carvalho, pediu no entanto a sua absolvição. Sem deixar de tecer críticas ao procurador do Ministério Público por “fingir” que Salgado não sofre de qualquer doença e que pode ser condenado a uma pena de dez anos, Francisco Proença de Carvalho diz só pedir que o seu cliente — que tem sido “arrasado” nos últimos oito anos — tenha “direito a ser julgado pelos mesmo princípios humanistas que os outros arguidos”.

Depois atacou a acusação. “A prova da acusação são os três núcleos de transferências que aqui estão em causa e uma presunção criminal que teve apenas um ligeiro apoio em dois testemunhos”, disse. O advogado referia-se ao inspetor tributário Paulo Silva que disse não ter “qualquer conhecimento direto dos factos, não participou neles e é o grande responsável pela teoria fracassada da Operação Marques”. E ao primo “desavindo” de Ricardo Salgado, José Maria Ricciardi, “a quem o Ministério Público recorre sempre que tem que acusar Salgado”. O advogado disse ainda que se Salgado for condenado, que seja a uma pena suspensa dado o seu estado de saúde e avançada idade.

Perante as críticas diretas aos argumentos do procurador, Vítor Pinto pediu ainda a palavra aos juízes. “Vamos afastar-nos de algum dramatismo”, afirmou, voltando a questionar o estado de saúde de Salgado. Segundo ele, o Ministério Público não ignorou a doença, “mas não aceita que esteja incapaz de perceber o julgamento”, disse.

“Constatámos aqui hoje que conseguiu reproduzir todos os dados da sua filiação”, constatou o procurador, admitindo que possa ainda estar numa fase inicial da doença.

Quanto aos argumentos da defesa, Vítor Pinto ainda atirou: “O fiasco é da acusação ou da não pronúncia? Só é brilhante a não pronúncia. Como é obvio isto evidencia que há aqui uma certa dose de teatralização”, disse.

Uma intervenção que motivou novamente uma reação da defesa ao lembrar que a avaliação da doença “é científica” e que não é feita pelo “tacto”.

O juiz voltou a perguntar a Salgado se não queria falar, lembrando que não seria prejudicado pelo silêncio: “Sinceramente, eu gostaria de poder dizer algo, mas estou muito diminuído nas minhas faculdades. A minha memória foi-se embora e peço desculpa por isso”. O magistrado ainda explicou que este é um direito que assiste a todos os arguidos e que ele não estava a ser tratado de forma diferente.

Durante este julgamento a defesa de Salgado já tentou o levantamento do arresto de bens à ordem do megaprocesso BES para pagar cerca de 10 milhões de euros de dívida e livrar-se de uma pena, o que foi recusado. Também tentou mostrar que Salgado sofre de Alzheimer não tendo neste momento grande consciência dos processos que enfrenta, mas o tribunal recusou suspender o caso.

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