O caos está instalado no PP espanhol. Isabel Ayuso, a mulher que ainda há uns meses era a estrela do partido, depois de ter conquistado com uma maioria quase absoluta a governação da região autónoma de Madrid, acusa agora a direção nacional de a investigar e até espiar por suspeitas de ter favorecido o seu irmão num contrato, um ataque “cruel” e com intenções de a “prejudicar politicamente”. E a direção já respondeu: vai abrir um processo disciplinar à governante de Madrid, cujas acusações considera “quase criminosas”, e não exclui mesmo tomar medidas legais — porque os bons resultados eleitorais não isentam ninguém de se comportar com “retidão e lealdade”.
O filme dos acontecimentos é complexo e adensou-se na manhã desta quinta-feira, quando Isabel Ayuso convocou os jornalistas para uma declaração sem direito a perguntas e disparou contra a direção do próprio partido. “Nunca pensei que a direção do meu partido fosse tão cruel“, explicou Ayuso, citada pela imprensa espanhola. E concretizou a acusação: “Dirigentes do PP estavam a elaborar um dossiê contra mim, implicando a minha família”.
A governante de Madrid não se conteve nas palavras e garantiu mesmo que haveria uma tentativa de “fabricar” acusações de corrupção contra si dentro do próprio PP, apontando diretamente ao líder, Pablo Casado: “É muito doloroso que dirigentes do teu partido, em vez de te apoiarem, sejam aqueles que te querem destruir. Não pode haver nada mais grave do que acusar alguém da própria casa, com responsabilidades de Governo, de corrupção. E fazê-lo sem provas metendo, pelo meio, a minha família, que nada tem a ver com política”.
Em causa estaria um contrato de 1,5 milhões de euros adjudicado, por ajuste direto, pela Comunidade de Madrid à empresa Priviet Sportive, em abril de 2020, pela compra de máscaras FFP2 e FFP3. O irmão da governante, Tomás Díaz Ayuso, seria alegadamente o intermediário do negócio, tendo recebido uma comissão de 288 mil euros pelo mesmo.
Ora esta informação estava na posse da direção nacional do PP, que a recebeu e começou a investigar a partir de setembro do ano passado. Isso mesmo confirmou o secretário-geral do partido, Teodoro García Egea, que garantiu que o líder, Pablo Casado, convocou nessa altura Ayuso para uma reunião, para a pôr a par do caso. Foi nessa altura que o partido abriu uma investigação interna, um “protocolo habitual que se segue em todos os casos”, garante Egea — mas frisa que o partido não recebeu desde então “qualquer esclarecimento” da governante de Madrid, tendo tentado colaborar com ela “em vão”.
Mas as acusações vão mais longe: além da investigação do partido, surgiram também notícias que apontavam que um funcionário da câmara de Madrid se teria encontrado com um detetive para começar a investigar também por essa via Ayuso e a sua família — e esse detetive teria, segundo o El Mundo, alertado a própria Ayuso para a existência da investigação.
O presidente da câmara madrilenha, José Luis Martínez-Almeida, já veio aliás confirmar que ordenou uma investigação sobre essa alegada contratação que teria por objetivo “espiar” Ayuso — mas não terá encontrado provas de “nenhum contrato” com esse fim.
Apesar dessa garantia, a história voltou a complicar-se durante a tarde, com a notícia da demissão do braço direito do presidente da câmara, Ángel Carromero, apresentada esta quinta-feira com “efeitos imediatos”, como noticiou o El Mundo. Fontes citadas pela imprensa espanhola garantiam que seria este o responsável pela operação para obter provas contra Ayuso. Já a nível do partido, o secretário-geral negou de forma “veemente” que tenha sido dada ordem para contratar algum detective privado — e garantiu que, se assim fosse, o responsável pela contratação cessaria funções de imediato.
Ao fim da tarde, mais uma reviravolta: segundo uma gravação divulgada pela agência noticiosa Europa Press, a agência de investigação Mira confirmou que foi contactada por “alguma empresa” (supostamente municipal) em que “governa o PP” para espiar a presidente da Comunidade de Madrid. Os detetives terão recusado fazer esse trabalho, porque o acesso aos dados que eram requeridos — e que passariam pela Autoridade Tributária e por um banco — era “ilegal”.
Ayuso garante legalidade do contrato
Perante estas acusações, Ayuso veio agora, na declaração desta quinta-feira, garantir publicamente que nem ela nem ninguém do seu executivo “interveio para adjudicar o contrato”, frisando que o seu irmão trabalha como comercial, na área da Saúde, há 26 anos e que o negócio não tem nada de ilegal: “Ninguém encontrará uma única prova de corrupção da minha parte”.
Para Ayuso, as acusações terão, assim, motivações políticas. A líder de Madrid tem, aliás, estado em rota de colisão com a direção de Casado, tendo ainda esta semana defendido que o próximo congresso do PP seja feito o mais cedo possível e acusando as cúpulas de o quererem adiar e retirar a voz aos militantes. E a cúpula do partido devolve a acusação: segundo o secretário-geral, a pressa em fazer o congresso serviria apenas para tentar desviar as atenções deste caso, que levou a que Ayuso lançasse “uma campanha massiva de ataques e calúnias intoleráveis” que prejudicaram “muitíssimo” o partido.
Agora, a guerra está aberta — Egea respondeu à declaração de Ayuso com uma conferência de imprensa poucas horas depois, lembrando que tanto ele como Casado apoiaram a recente estrela do PP “quando ninguém acreditava nela” e dizendo estar agora a ouvir acusações “quase criminosas” da parte da governante local.
O processo aberto internamente contra Ayuso pode, segundo o El Mundo, acabar mesmo com a sua expulsão do partido. E esse não seria o cenário mais grave — num conflito “nunca visto”, como descreveu o secretário-geral do PP, o caso pode mesmo acabar em tribunal.