Cátia Bruno e João Porfírio são os enviados especiais do Observador à Ucrânia
Chamemos-lhes Nykolai e Kateryna, porque na verdade não houve tempo para ficar a conhecer os seus nomes. “Tudo bem?”, disse ele, mesmo assim em português, quando lhes dissemos que éramos jornalistas de Portugal. “O meu irmão é um bocadinho fanático por línguas estrangeiras”, interrompeu ela, revirando os olhos. “Quando fui a Portugal, estive em Lisboa, Porto, Aveiro, Cascais…”, vai enumerando o jovem, algures na casa dos 20 anos.
Ouça aqui o episódio de hoje de “A História do Dia” sobre a guerra na Ucrânia.
Os dois irmãos estavam bem-dispostos a contar ao Observador que tinham vindo de Khmelnytskyi (cidade praticamente a meio caminho entre Kiev e Lviv) para tentar apanhar um comboio que os levasse até à Polónia, quando se ouviu o som metálico de uma sirene, que continua a ecoar ao longo de minutos. “Temos de manter a calma”, aconselha Kateryna, à medida que a multidão que ocupava toda aquela plataforma da Estação Central de Lviv se encaminhava ordeiramente para o nível inferior da estação. A quantidade de pessoas em movimento é tal que rapidamente a perdemos de vista.
Outro aviso sonoro de ataque aéreo. Há relatos que há minutos o exército ucraniano interceptou um míssil russo com destino a Lviv. pic.twitter.com/PYkCCEYeVx
— João Porfírio (@porfiriojoao1) February 25, 2022
Mas é falso alarme. Ali está ela a dizer agora “Vamos, vamos!”, já longe da calma que pedia há pouco, enquanto acelera o passo e quase tropeça num caixote de lixo. Duas idosas pedem ajuda para carregar malas escadas abaixo, repetindo “Spasíbo” (Obrigado) baixinho. O tom é educado e os sorrisos saem com naturalidade. A pressa com que agarraram nas mangas dos casacos dos que as rodearam para pedir ajuda, porém, denunciou a sua aflição. Nesta estação de comboios, ao contrário de vários locais na cidade, não há abrigos subterrâneos nem caves. A multidão vai-se acumulando nos corredores da estação, os olhos virados para cima e colados na plataforma para onde desejam voltar rapidamente, já que representa a possibilidade de abandonar o país.
Há alguns soldados, provavelmente de partida para uma das linhas da frente — Donetsk? Odessa? Kiev? Ainda há uma só “linha da frente” numa invasão desta escala?—, mas sobretudo civis. São quase todos famílias. Há muitas crianças, mas não brincam umas com as outras. Estão na sua maioria ao colo das mães e dos pais, rostos enterrados nos peitos. Uma rapariga com pouco mais de 5 anos está de pé, mão dada à mãe. Na outra mão segura um terço, que vai desfiando.
Ukraine/Russia: Reports of further strategic missile strikes against military infrastructure outside Lviv and Kyiv. Air raid sirens have continued throughout the morning. Few on streets most taking shelter. No actual airstrikes by aircraft as was anticipated.
— Warren Risk, Crisis, Intelligence Consulting (@WarrenRisks) February 25, 2022
Passado cerca de 20 minutos, alguns arriscam voltar a subir as escadas em direção à plataforma. Rapidamente os restantes seguem-nos, apesar de os rumores que circulam darem conta de que a sirene terá soado por ataques aéreos à cidade de Lviv. São provavelmente a infraestruturas militares, longe do centro da cidade. Foi pelo menos assim na noite passada, como contou o gerente Andriy, quando nos recebeu no hotel de madrugada: “A sirene tocou exatamente à mesma hora em que começou o ataque ao país no dia anterior. Tememos o pior.”
O pior cenário, porém, não se confirmou e Lviv mantém-se uma cidade onde circulam os autocarros, há pessoas na rua e as lojas estão abertas. As longas filas para o multibanco são o único sinal evidente de que algo não está bem. Natalia Kalyutsuk, residente em Kiev que foi apanhada de surpresa pela invasão da sua cidade enquanto participava num congresso de beleza em Lviv, está a precaver-se com dinheiro vivo quando conta os seus planos ao Observador: “Ia regressar amanhã para Kiev, mas já não vou. Conto voltar a 28 de março, espero estar a dar tempo suficiente para as coisas acalmarem”, confessa, com pouca confiança nas suas próprias palavras. Fugir está fora de questão, porque não quer deixar a família que está em Kiev, em particular o pai que está num lar.
De regresso à Estação Central, estes refugiados que desejam ir para a Polónia comportam-se de forma calma e ordeira. Não há empurrões nem atropelos nem gritos. Um dos empregados de limpeza da estação volta a varrer o chão, com gestos lentos, assim que os primeiros rostos emergem da parte subterrânea. Até as mães com crianças ao colo voltam à plataforma.
A sirene tocará uma vez mais no espaço de uma hora e a coreografia será repetida. Desta vez, ao voltar para cima, Iryna Timoshenko, mãe de três filhos que quer seguir para a Polónia sem nada marcado nem família à espera, comenta com o Observador que não se espanta que também Lviv — cidade historicamente mais influenciada pelo Ocidente e a menos de 400 quilómetros de distância da Polónia — possa vir a ser tomada, exteriorizando o medo. Esse é comum a todos os que ali estão a aguardar por um comboio que os leve para bem longe de uma casa que agora consideram hostil. Entre lágrimas, Iryna escolhe as palavras que quer usar para resumir a situação da cidade: “Não quero ficar aqui à espera para ver quando Vladimir Putin chegar.”