Recuperámos este texto esta quinta-feira, dia 22de março, depois de um porta-voz do Kremlin ter admitido usar armas nucleares se a existência da Rússia estiver em risco.

“Quem tentar impedir-nos, ou, pior, criar ameaças ao nosso país, ao nosso povo, deve saber que a resposta da Rússia será imediata. E isso vai trazer-vos consequências que nunca encontraram na vossa história”.

Apesar de não ter proferido as duas palavras que ninguém queria ouvir, não houve quem não percebesse a mensagem que o presidente daquele país estava a querer passar esta quinta-feira, primeiro dia da invasão da Ucrânia — “ataque nuclear”.

Não disse ele, disseram outros, como Jean-Yves Le Drian, o ministro dos Negócios Estrangeiros francês, em entrevista à TF1, também em tom de ameaça mas igualmente sem articular a expressão: “Acho que Vladimir Putin tem de perceber que a NATO é uma aliança nuclear”.

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Há diferenças: para além de a NATO obedecer a uma política de “no first use”, o que significa que só em resposta a um ataque nuclear poderá equacionar uma resposta ao mesmo nível, precisa de cumprir uma série de trâmites ao longo da cadeia de comando para tomar essa decisão — que, tendo em conta o caráter da própria aliança, nunca será tomada por um homem só.

No caso da Rússia, cuja capacidade nuclear está mais do que comprovada, a dúvida assenta noutros pontos: até que ponto pode usá-la, de quem depende essa decisão e que passos têm de ser dados antes de o “botão” (que na verdade é apenas metafórico) ser finalmente apertado?

“Nos termos do Artigo 87.1 da Constituição Russa, o Presidente é o Comandante Supremo das Forças Armadas, e a Lei sobre a Defesa declara que o Comandante Supremo das Forças Armadas é a autoridade suprema em todos os assuntos relacionados com o nuclear”, explicou num ensaio publicado em janeiro de 2020 Matt Korda, investigador do Programa SIPRI de Desarmamento Nuclear, Controlo de Armas e Não-Proliferação e responsável do Projeto de Informação Nuclear da Federação de Cientistas Americanos. “Adicionalmente, a atual doutrina militar russa afirma que ‘a decisão de utilizar armas nucleares será tomada pelo Presidente da Federação Russa’.”

Da queda da política do “no first use” à ordem executiva de 2020

Desde que em 1993 a Rússia deixou cair a promessa de “no first use” feita onze anos antes por Leonid Brezhnev, a legislação russa no que diz respeito ao nuclear tem sido cada vez mais permissiva. Em 1997 a lei de segurança nacional permitiu a utilização de armas nucleares “em caso de ameaça à existência da Federação Russa como Estado soberano independente”. Depois, em 2020, foi publicada a doutrina militar que alargou as circunstâncias em que o país pode legalmente recorrer a armas nucleares nos ataques com armas de destruição maciça perpetrados contra a Rússia ou os seus aliados e até às “agressões em larga escala utilizando armas convencionais em situações críticas para a segurança nacional da Federação Russa”.

“Estas revisões conduziram a questões sobre se a Rússia empregaria armas nucleares de forma preventiva numa guerra regional ou apenas em resposta à utilização de armas nucleares num conflito mais vasto”, escreveu Amy F. Woolf, especialista em Política de Armas Nucleares, num relatório entregue em setembro de 2021 ao Congresso norte-americano, justamente sobre o poderio nuclear daquele país.

“Em meados de 2009, Nikolai Patrushev, o chefe do Conselho de Segurança da Rússia, deu a entender que a Rússia teria a opção de lançar um ‘ataque nuclear preventivo’ contra um agressor ‘utilizando armas convencionais numa guerra generalizada, regional ou mesmo local’”, acrescentou ainda, deixando claro que, para utilizar armas nucleares — coisa que já não acontece (e também não tinha sucedido em quaisquer outras ocasiões antes disso) desde o fim da Segunda Guerra Mundial —, Vladimir Putin não tem sequer de ser alvo de ataque.

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Entretanto, com a assinatura, em 2020 e pelo presidente russo, de uma nova ordem executiva, os “Princípios Básicos da Política de Estado da Federação Russa em Matéria de Dissuasão Nuclear” foram ainda mais alargados — e o poderio do país garantido. Diz o documento, segundo o qual, para a Rússia, armas nucleares são consideradas “meios de dissuasão”, que o país tem de possuir “meios capazes de infligir danos inaceitáveis garantidos a um potencial adversário através do emprego de armas nucleares em quaisquer circunstâncias”.

Este documento especifica também que, legalmente, o presidente russo, que é quem tem autoridade e legitimidade para tomar a decisão, pode ativar o modo nuclear, desde que cumprida uma de entre quatro circunstâncias:

  • Se existirem “dados fiáveis” sobre lançamentos de mísseis contra o seu território ou dos seus aliados;
  • Se forem usadas armas nucleares “ou outro tipo de armas de destruição massiva”, mais uma vez contra a Rússia ou aliados;
  • Se forem atacados “locais críticos” governamentais ou militares russos;
  • Se o país for alvo de agressão com armas convencionais, nos casos “em que a existência do Estado esteja em risco”.

Como apontou Amy F. Woolf no relatório enviado há cinco meses para o Congresso, apesar de não apelar ao uso preventivo de armas nucleares durante os conflitos convencionais, o documento é dúbio sobre se a Rússia admitiria ou não escalar para o nuclear se perdesse uma guerra dita convencional.

“Observa que, ‘no caso de um conflito militar, esta Política prevê a prevenção de uma escalada das ações militares e o seu termo em condições aceitáveis para a Federação Russa e/ou os seus aliados’. Os analistas consideraram que isto significa que a Rússia poderá ameaçar escalar para o nuclear como forma de dissuadir um conflito capaz de ameaçar a existência do Estado”, escreveu a especialista em Política de Armas Nucleares.

Sem Cheget, Kazbek e Kavkaz não há ataque nuclear

Como acontece nos Estados Unidos, em que a voz de comando também cabe exclusivamente ao presidente — o que fez correr muita tinta e deixou muita gente sem dormir durante a presidência de Donald Trump, que chegou igualmente a ameaçar fazer uso desse poder  —, para Vladimir Putin poder dar o ok a um ataque nuclear não é preciso muito. O POTUS precisa da “Nuclear Football”, a mala preta que o acompanha para toda a parte e que contém os códigos necessários para desencadear um ataque, o presidente da Rússia tem de ter a “Cheget”.

Desde 1985 que os presidentes daquele país se fazem acompanhar em permanência deste dispositivo, também encerrado dentro de uma pasta portátil preta, que lhes permite “monitorizar crises estratégicas e transmitir decisões de comando nuclear”, explica Matt Korda.

Apesar de o processo russo ser muito mais opaco do que o americano — nos Estados Unidos, por exemplo, sabe-se que o presidente tem um cartão com códigos, de que tem de fazer uso para se identificar perante o Pentágono antes de ordenar este tipo de ataque, o “biscuit”; e nunca foram revelados detalhes do género para o caso russo —, os especialistas acreditam que existem três “Cheget”.

Para além do presidente, também o ministro da Defesa e o Chefe do Estado-Maior General estarão na posse de aparelhos idênticos — “Embora a autoridade máxima de lançamento caiba ao presidente”, ressalva o investigador do Programa SIPRI.

Como existe um “secretismo tremendo” em torno do processo, justifica, é impossível saber ao certo para que servem exatamente estes “Cheget” extra. “É possível que possam funcionar como uma forma de validação ou de verificação contra a decisão de lançamento nuclear do Presidente”, concede o especialista. “Contudo, dado que nem o Ministro da Defesa nem o Chefe do Estado-Maior General são constitucional ou doutrinariamente designados como decisores nucleares, é mais provável que as suas pastas funcionem como elos (potencialmente necessários) na cadeia de comando, que serão utilizados para transmitir a ordem de lançamento nuclear do presidente até às unidades de custódia de lançamento e ogivas relevantes.”

Aquilo que se sabe, de certeza, é que para, dar a ordem de ataque nuclear no “Cheget”, Vladimir Putin terá de fazê-lo através da rede de comando e controlo “Kazbek”, utilizando o sistema de comunicações especiais “Kavkaz”.

“O Kazbek tornou-se plenamente operacional em 1985. Apoia o Kavkaz, um sistema dedicado de comunicações entre altos funcionários governamentais concebidos para operar sob as condições de um ataque surpresa”, explicaram num ensaio publicado em 2019, Jeffrey G. Lewis e Bruno Tertrais, especialistas em ​​não-proliferação nuclear e geopolítica e professores do Instituto de Estudos Internacionais de Middlebury, na Califórnia.

De acordo com os autores, pelo menos até ao início dos anos 1990, depois de a ordem de comando ser enviada através dos “Cheget”, era necessária a introdução de dois códigos diferentes, “como uma camada extra de autenticação”.