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Ucrânia. Crónica de uma chegada atribulada e da fila interminável de refugiados que esperava do outro lado da fronteira

Este artigo tem mais de 2 anos

Foram seis horas para fazer o percurso de 300 quilómetros de Cracóvia (Polónia) a Lviv (Ucrânia). Muitos "Davai" depois na fronteira, o drama de quilómetros de fila de refugiados que esperavam passar.

Reportagem na Estação de Comboios de Lviv, na Ucrânia. As pessoas nesta estação esperam e desesperam por um comboio que os leve para a Polónia. Os homens têm de ficar devido à Lei Marcial que proíbe os homens entre dos 18 e os 60 anos de saírem do país. A Rússia, a mando do seu presidente, Vladimir Putin, invadiu a Ucrânia no passado dia 24 de fevereiro de 2022. Lviv, Ucrânia, 25 de fevereiro de 2022. JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR
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JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Texto e fotografias dos enviados especiais do Observador à Ucrânia, Cátia Bruno e João Porfírio

Quatro horas. Era esse o tempo de viagem previsto pelo mapa do telemóvel quando arrancámos de Cracóvia, na Polónia, em direção à cidade ucraniana de Lviv. Terminaria mais de seis horas depois, quando finalmente conseguimos adormecer por duas horas no sofá do lobby de um hotel ucraniano, graças à bondade de um estranho. O desconforto, porém, não se compara àquele a que assistimos ao longo da estrada que liga Krakovet’s, na fronteira, a Lviv, e que era o primeiro sinal da crise de refugiados que esta invasão está a provocar.

As nossas primeiras duas horas a percorrer território polaco decorreram praticamente sem percalço. O único indício de que algo de anormal se passava era a presença policial: mais de dez carros com agentes passaram pela estrada A4 com sirenes azuis histriónicas a piscar e, numa das últimas áreas de serviço antes da fronteira, reuniam-se mais de uma mão cheia de carrinhas da polícia e dezenas de agentes.

Ouça aqui “A História do Dia” com Cátia Bruno e João Porfírio.

Observador em Lviv. A fuga que separa famílias

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Tudo parecia calmo do lado polaco do posto fronteiriço, com poucos carros a tentarem atravessar o posto em direção à Ucrânia. Do lado de chegada, contudo, a situação era bastante diferente, mas não o saberíamos até ter chegado de vez ao outro lado, já que o ponto por onde entravam os refugiados ficava longe do local em direção a território ucraniano. Aquilo que intuímos, mas ainda não tínhamos visto, era uma fila de carros que se estendia por quase 20 quilómetros, completamente parada. O reflexo do drama humanitário que se vive neste momento na Ucrânia, onde uma viagem habitualmente de seis horas entre Kiev e Lviv chega agora a demorar 25, tal é a quantidade de carros na estrada.

Mas antes de vermos isso, era necessário passar a fronteira. Se do lado polaco tudo decorre com relativa tranquilidade, no lado ucraniano já é possível sentir mais a tensão — até pelas armas bem visíveis que todos os guardas transportam, em contraste com os colegas polacos. Do lado ucraniano, a maioria praticamente não fala inglês e, por isso, a comunicação reduz-se a gestos, entregas de documentos, acenos de cabeça e muita repetição de expressões como “Press” e “Portugalia” (do nosso lado) e “Davai, davai”, expressão que traduz a ideia de “Vá, vamos” em russo e ucraniano, do lado deles. Por fim, é-nos entregue um carimbo num papel e dado sinal para seguirmos.

Pensamos que o mais difícil já passou — mas estamos errados. Depois de mais de 40 minutos na fila para sair do controlo fronteiriço (e já vamos em mais de três horas e meia de viagem), chegamos finalmente à beira da estrada e entregamos o papel carimbado a um guarda. Este fica visivelmente irritado, grita em ucraniano, gesticula. Por fim conseguimos compreender: devíamos ter dois carimbos — falta o do carro. Obrigados a voltar para trás, encontramos agora no pequeno guichet uma senhora de meia-idade que, mais uma vez, não fala uma palavra de inglês. Sorte a nossa, a colega mais nova sentada atrás dela traduz. Ao verem as nossas carteiras profissionais, soltam uma exclamação: “Vocês são os segundos jornalistas a passarem por este posto de fronteira antes disto começar! Antes disso, só chegaram uns australianos”, comentam, ligeiramente felizes pela chegada da imprensa internacional. Mas quando lhes perguntamos sobre o estado de espírito que têm naquele momento, são mais lacónicas. A mais velha encolhe os ombros, resignada. A mais nova diz “Não vamos a lado nenhum, vamos lutar pela nossa pátria”, em tom maquinal.

Despedidas feitas, nova meia hora na fila para sair e aceno bem-disposto, como quem diz “Afinal conseguiram”, do soldado há pouco rabugento, estávamos oficialmente em território ucraniano. E foi aí que nos deparámos com o cenário dramático da chegada dos refugiados. As várias estações de serviço ali perto estavam cheias de gente a comer e a atestar carros. Ao longo de quilómetros, os carros ucranianos ocupavam a estrada. Alguns arriscavam ultrapassar os outros, percorrendo parte do percurso em contra-mão — o que nos obrigava a ter de desviar para a berma a fim de evitar um choque frontal.

Reportagem na fronteira da Polónia com a Ucrânia. A Rússia, a mando do seu presidente, Vladimir Putin, invadiu a Ucrânia no passado dia 24 de fevereiro de 2022. Ucrânia, 25 de fevereiro de 2022. JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR Reportagem na fronteira da Polónia com a Ucrânia. A Rússia, a mando do seu presidente, Vladimir Putin, invadiu a Ucrânia no passado dia 24 de fevereiro de 2022. Ucrânia, 25 de fevereiro de 2022. JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Zona da fronteira terrestre da Ucrânia com a Polónia

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Os que voltam para trás

A determinado ponto do caminho, um check-point improvisado pelo exército ucraniano avaliava a documentação de todos os que pretendiam dirigir-se à fronteira com a Polónia. Ali começava a ser aplicado um dos pontos da lei marcial: dificultar a saída do país de todos os homens entre os 18 e os 60 anos, para poderem ser reservistas. A velocidade a que seguíamos em sentido contrário impedia de ver o impacto desse anúncio nas famílias — mas os quantos casos de homens a regressar a pé para Lviv com que nos cruzávamos no caminho deixaram claro do impacto claro na separação de famílias.

Ao fim de quase seis horas de viagem, chegamos finalmente aos arredores de Lviv. São quase quatro da manhã quando tentamos telefonar para todos os hotéis da cidade e recebemos a mesma resposta: “Estamos cheios”. Entre telefonemas, ouvimos sons ao fundo que se assemelham perigosamente a explosões. De seguida, a sirene de aviso dispara. E ouvimos e vimos três aviões (ucranianos) a cruzarem o espaço aéreo, que está oficialmente fechado. Confrontados com a possibilidade de passar a noite no carro numa zona em risco de ataque aéreo, seguimos para o centro da cidade, em direção a um dos hotéis cheios. Neste ponto, com a adrenalina a disparar e pouco mais de 2 horas de sono intermitente no corpo, somos setas velozes à procura de um abrigo, capazes de quase tudo — e se é assim connosco, podemos imaginar como é para os que fogem e esperam naquela fila de carros para atravessar a fronteira que continua teimosamente lenta.

São agora 5h da manhã e paramos o carro em frente a um hotel. Tem as luzes apagadas e parece abandonado, como se não estivesse a funcionar. Ao aproximarmo-nos da porta, percebemos que é um truque usado durante a noite, altura de maior perigo. O gerente está mesmo ali, a ajudar uma hóspede a entrar, quando lhe pedimos que nos deixe passar ali a noite, mesmo sem ter vagas. “Podemos dormir no chão do lobby, pagamos à mesma como se fosse um quarto, só queremos ter um teto sobre as nossas cabeças, carregar os telemóveis, beber água”. O gerente está receoso, não sabe se somos quem dizemos ser: “Não sei se posso, a situação está muito complicada, sabe?”, responde. “Sei, é precisamente por isso que lhe estamos a pedir isto”, dizemos. Os seus olhos passam rápido de um lado para o outro, como quem está a pesar prós e contras, e de repente páram: tomou uma decisão. “Entrem. Façam de conta que estão em vossa casa”, diz. Ao fundo, volta a ouvir-se o som das sirenes. As centenas de pessoas a caminho da fronteira, ao longo daquela fila de quilómetros e quilómetros, também as terão ouvido.

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