A crítica não foi unânime entre os primeiros clientes da então União Soviética. “Não, gosto nada, não é russo“, atirou um cliente mais velho, com cara desiludida, numa reportagem da televisão canadiana CBC. Um rapaz, mais jovem, admitiu que até tinha gostado, mas que “esperava mais“. E uma mulher discordava: “Não sei o que comi, mas foi diferente e delicioso“.

A 31 de janeiro de 1990, uma fila — estima-se que por ela tenham passado mais de 38 mil pessoas — dava a volta a múltiplos quarteirões perto da Praça Pushkin, no centro de Moscovo, para provar os famosos Big Mac. Horas e horas de espera — ainda que neste outro vídeo da ABC elogiassem a rapidez do atendimento — para entrar no edifício com os arcos dourados, que se iluminavam pela primeira vez pouco depois dos difíceis anos da guerra fria e da queda do muro de Berlim, numa altura em que a economia soviética se abria ao mundo.

[As imagens das longas filas à porta do primeiro McDonald’s em Moscovo]

Yuliya Chernova, jornalista do The Wall Street Journal, foi uma das que esperou para provar pela primeira vez o “sabor” da América. “Oh, a delícia do batido (…). Enquanto a [minha] mãe esperava na embaixada dos EUA para submeter os nossos papéis de refugiadas, a avó e eu estávamos na fila desordenada”, escreveu, no Twitter.

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Steve Rosenberg, correspondente da BBC em Moscovo, também lá esteve. “Em 1990, estava na fila quando a McDonald’s abriu o primeiro restaurante em Moscovo: quando as cortinas de ferro estavam a desmoronar-se e a Rússia estava a abraçar o ocidente.”

O momento foi histórico e ficou gravado para a posteridade em reportagens que viraram vídeos do YouTube (agora suspenso na Rússia por decisão de Moscovo) com milhares e milhões de visualizações. E histórico foi também o anúncio desta terça-feira, da McDonald’s, de fechar temporariamente os seus 847 restaurantes na Rússia. “Extremamente simbólico”, apelidou Steve Rosenberg.

A decisão surgiu depois de várias empresas terem cortado laços com a Rússia— algumas de forma permanente, muitas apenas temporariamente. E perante críticas à cadeia de fastfood por ter demorado quase duas semanas desde o início da guerra para tomar uma posição sobre o conflito. Além da McDonald’s, anunciaram a saída da Rússia grandes marcas de alimentação e bebidas do capitalismo norte-americano, como KFC, Pizza Hut, Starbucks, Coca-Cola ou a PepsiCo (o Burger King é dos poucos que resiste em fechar).

[Reportagem da ABC]

Em comunicado, a McDonald’s assegura que os salários dos cerca de 62 mil trabalhadores naquele país vão continuar a ser pagos na totalidade e adianta que não consegue prever quando vai reabrir os estabelecimentos. “Estamos a sofrer ruturas na nossa cadeia de abastecimento, juntamente com outros impactos operacionais”, indicou. Cerca de 84% dos restaurantes da gigante de fastfood no país são detidos pela empresa, enquanto o resto são franchise.

O encerramento dos restaurantes na Rússia terá levado, segundo avança alguma imprensa, a longas filas com cidadãos em Moscovo para dar uma última trinca (pelo menos para já) nos hambúrgueres. E já há venda de alimentos da cadeia de fastfood em sites de classificados.

Russos vendem McDonald’s em sites de classificados

Uma refeição custava mais de metade de um salário diário

Naquele dia de 1990, a McDonald’s, fundada nos EUA nos anos 50, quebrava o recorde do maior número de clientes atendidos num dia, um reflexo de como os russos estavam sedentos de experimentar produtos ocidentais. Mas a fome custava-lhes caro: por uma refeição era cobrado, em média, mais de metade do salário médio diário no país.

[Reportagem da CBC]

Foram precisos vários anos de negociações para que a McDonald’s pudesse entrar em território russo. E foi pela mão do ramo da cadeia no Canadá que o passo estratégico se tornou possível. George Cohon, CEO da McDonald’s Canadá, ter-se-á agarrado à ideia depois de ter levado representantes soviéticos ao McDonald’s, em 1976, aos Jogos Olímpicos de Montreal.

Mas foi necessário ensinar os russos a confecionar hambúrgueres em massa ao estilo da McDonald’s e a produzir batatas maiores, como conta a ABC. Fora da cidade de Moscovo, a McDonald’s investiu 50 milhões de dólares para construir uma fábrica de processamento dedicada a produzir 14 mil pães por hora, transformar 3.000 toneladas de batatas por dia em palitos de batatas fritas e confecionar e congelar 10.000 hambúrgueres por dia.

Mais de 30 anos depois, a decisão de sair (temporariamente) da Rússia traz à memória a chamada “teoria da paz da McDonald’s”, formulada pelo jornalista do The New York Times Thomas Friedman, notaram outros utilizadores do Twitter (na verdade, a teoria caíra muito antes, com a intervenção militar na Jugoslávia). No livro de 1999 “O Lexus e a Oliveira”, Friedman argumentava que se a um país já tinha chegado a cadeia de fastfood era porque já existia uma classe média suficientemente robusta — e a classe média tende a estar contra a guerra. Em resumo, concluía Freedman, dois países c0m restaurantes McDonald’s nunca entrariam em guerra.