Numa peça de televisão, um repórter chinês anda ao lado dos soldados russos e filma-os em território ucraniano. Noutra, senta-se ao lado deles e acompanha-os num veículo russo. Num terceiro momento, faz uma entrevista a um dos líderes da autoproclamada república separatista (reconhecida pela Rússia) de Donetsk. Todas estas imagens são raras e demonstram um acesso incomum às tropas russas — e estão a levantar questões sobre o verdadeiro papel que a China pode assumir na invasão da Ucrânia, apesar de se dizer neutra.
As imagens de Lu Yuguang, que trabalha para a televisão de notícias da China Phoenix TV como correspondente em Moscovo, vieram gerar dúvidas sobre o acesso que a Rússia estará a dar, em exclusivo, à China. Como conta o Telegraph, Yuguang anda a “fazer reportagem livremente” em cidades que estão cercadas, incluindo Mariupol — a cidade cuja maternidade foi bombardeada na madrugada desta quinta-feira, provocando reações de repúdio em muitos países e levando o presidente ucraniano a falar em “genocídio”.
Nas reportagens que o jornal britânico menciona, Lu Yuguang chega a conseguir entrevistar soldados russos — um deles diz que não está nervoso porque já anda a combater há oito anos, ou seja, desde que a Rússia anexou a Crimeia, em 2014.
Noutra peça, o jornalista defende mesmo que as tropas ucranianas estão a fazer “reféns, mais de 1.634, para usar como escudos humanos“. Um argumento em tudo semelhante, de resto, ao que ainda esta quinta-feira o ministro dos Negócios Estrangeiros russo, Sergey Lavrov, usava para justificar o ataque à maternidade de Mariupol, acusando os ucranianos de usar civis como escudos.
Yuguang conseguiu ainda uma entrevista com Denis Pushilin, líder da autoproclamada república de Donetsk, a dar conta dos avanços que as suas forças estariam a fazer com a ajuda da Rússia. Já no Weibo, uma rede social chinesa parecida com o Twitter, partilha vídeos que mostram os tanques russos a arrancar, com uma música épica como pano de fundo.
No Twitter, a analista de média da BBC na China, Kerry Allen, referiu o caso do repórter chinês, sobre quem diz haver “muitas dúvidas”, depois de no dia 22 de fevereiro ter estado a apenas dois quilómetros da fronteira de Lugansk (a outra região separatista que a Rússia reconheceu): “Parece ter tido um acesso bastante exclusivo”, comentou.
A lot of questions floating around about this guy at the moment, who's appeared in Mariupol, interviewing Russian soldiers on Chinese TV.
His name is Lu Yuguang and he's Phoenix TV's chief Moscow correspondent. He's a former navy officer. pic.twitter.com/QlJzZJOdAG
— Kerry Allen 凯丽 (@kerrya11en) March 8, 2022
Some of his packages in recent days appear to have shown the inside of military vehicles and him interviewing Russian soldiers. pic.twitter.com/Hce82f8zs7
— Kerry Allen 凯丽 (@kerrya11en) March 8, 2022
A analista da BBC também notou que Yuguang teve autorização para entrevistar militares russos e até entrar nos seus veículos armados.
Aqui é possível ver um exemplo destas imagens, numa peça que conta que a Rússia acusa a Ucrânia de obstruir a evacuação de Mariupol.
A ligação entre o jornalista chinês e a Rússia não é de agora. Yuguang, que era um oficial da marinha antes de se tornar jornalista e correspondente em Moscovo, conta com anos e anos de aclamação profissional por parte do Estado russo ou de entidades russas.
Pelo menos é isso que mostra o site da própria Phoenix TV, que conta que o jornalista se formou na universidade de Liaoning, na China, em russo, e se especializou depois em jornalismo já em Moscovo. Depois de em 2002 ter começado a trabalhar na Phoenix TV, ganhou prémios quase todos os anos: em 2003, uma medalha de “excelente repórter” dada pelas tropas russas; em 2004, um prémio pelas suas “reportagens militares” dado pela marinha russa; no ano seguinte, mais uma medalha do departamento de Defesa russo.
Os prémios repetem-se em 2008, 2012, 2013, 2014 e 2015 — neste último ano, mereceu a distinção de “excelente repórter” especificamente pela cobertura da guerra da Síria. O texto é de 2016, pelo que, se houve prémios posteriores, não estão mencionados aqui.
A Phoenix TV é descrita pela Reuters como uma televisão “privada” mas com uma “posição editorial pró-Pequim”. No ano passado era noticiada a entrada de um representante da televisão estatal chinesa como vice-presidente executivo do canal, que tem escritórios em Hong Kong e Pequim. Já o trabalho de Yuguang sugere que os media chineses podem estar a receber um acesso sem precedentes ao exército de Vladimir Putin, ajudando assim a disseminar a narrativa da Rússia, aponta o Telegraph.
Os sinais parecem indicar que haverá uma coordenação — “implícita ou explícita”, diz o jornal — entre Moscovo e Pequim, que tem passado à imprensa diretivas para não usar a palavra “invasão”. Precisamente, aliás, como a Rússia tem feito, ordenando que se evitem as palavras “guerra” e “invasão” para classificar o que Putin diz ser apenas uma “operação militar especial”.
A China tem insistido na sua neutralidade em relação à invasão — termo que recusa usar — da Ucrânia, mas dando, ao mesmo tempo, vários sinais de apoio à Rússia. Na votação de 25 de fevereiro do Conselho de Segurança da ONU sobre uma resolução que condenava a invasão, a China absteve-se, tendo depois afirmado a sua disponibilidade para servir de mediadora no conflito.
No entanto, Pequim chegou a condenar as primeiras sanções ocidentais à Rússia, na véspera da invasão. A 7 de março, o ministro dos Negócios estrangeiros chinês, Wang Yi, descrevia de forma clara a relação entre Rússia e China como sendo “firme como uma rocha” e “uma das relações bilaterais mais cruciais no mundo”.