Do Belcanto se fez Canto e, agora, Encanto. “Porque a história tinha de continuar”, José Avillez arregaçou as mangas e deu azo à criatividade tendo como estrelas da companhia os vegetais e colocando definitivamente de lado a proteína animal. Mas que ninguém fique com a ideia errada, o novo restaurante do famoso chef não é necessariamente para vegetarianos, mas sim para todos aqueles capazes de aceitar o desafio proposto: chegar ao fim dos 12 momentos do menu único “sem sentirem falta de comer um bitoque no final”. Doze snacks, pratos principais e sobremesas depois confirmamos a falta que a carne, o peixe ou marisco não nos faz.
A história
Muito antes de se deixar encantar pelos vegetais, José Avillez fez furor com o Belcanto. Ao leme desta cozinha desde 2012, o restaurante que catapultou o chef para o firmamento Michelin mudou de morada em 2019, mas não foi para muito longe, saltando para a porta ao lado e mantendo-se no coração do Chiado. Desde então, o espaço que durante anos acolheu o primeiro duas estrelas de Lisboa foi sofrendo alterações. Três meses antes da crise sanitária deixar a restauração com os nervos em franja, o espaço reabria com o nome “Canto”, um projeto de curta vida que tentou casar a comida de Avillez com a curadoria musical de Ana Moura e António Zambujo. O modelo de negócio não conseguiu ajustar-se aos tempos de grande imprevisibilidade e outra identidade foi criada: saíram as performances ao vivo e a cozinha descontraída e entraram os verdes trabalhados sobre a égide da alta cozinha.
Foram 3 meses espetaculares, uma cozinha mais tradicional portuguesa com música todas as noites. Passaram por lá dezenas e dezenas de artistas portugueses, alguns internacionais, foram noites fantásticas. De repente, aparece a pandemia. É um modelo de negócio que deixa de funcionar sem sabermos quando é que pode voltar a funcionar… Honestamente, foi pensado para promover acima de tudo a ligação entre a cultura e a gastronomia. E do Belcanto passa para o Canto… e, depois, começo a pensar no Encanto, porque a história tinha de continuar”, diz ao Observador.
No arranque de 2021, o grupo encerrou temporariamente todos os restaurantes, sendo que seis não voltaram a funcionar. Já o conceito do Encanto foi pela primeira vez falado há cerca de um ano, mas a pandemia mexeu com os planos e com a data de abertura do novo restaurante de Avillez. A dificuldade em assegurar dois meses estabilizados, seguidos, de negócio empurrou a estreia gastronómica para março de 2022: foi tempo suficiente para pensar e repensar. Como em todos os projetos do chef, mudanças significativas foram feitas nas semanas finais. “Até há dois meses, na minha cabeça, este não era um restaurante 100% vegetariano, mas isto poderia ter acontecido também em maio do ano passado, quando fôssemos para os ‘finalmentes’. Umas semanas antes das provas sérias dos menus chegámos à conclusão que conseguíamos oferecer uma ótima proposta sem ter carne, peixe ou marisco”.
O espaço
A decoração do espaço, a cargo do Studio Astolfi, foi primeiramente pensada para o Canto e só depois atualizada já por causa do Encanto. Mudam-se os conceitos gastronómicos, mas a peça central continua a mesma: o cabinet que forra e adorna a sala em forma de “u”. É impossível não olhá-lo com alguma dedicação para perceber os muitos objetos que o complementam — se antes eram da esfera musical, alusivos ao trio Ana Moura, António Zambujo e Avillez —, agora todos eles referem-se ao mundo vegetal (ei-los, o regador, o chapéu de palha, a loiça em cerâmica a piscar o olho ao tema e ainda os talheres em madeira em formato XXL). “O cabinet atravessa o teto, abraça o espaço”, assegura Joana Astolfi.
Astolfi fala num”espaço de alta-costura”, um restaurante com um “feeling noturno”, mas também “teatral, experiencial, sensorial e mais misterioso” e ainda “voyeurista”. Os adjetivos refletem a escolha de materiais: da madeira escura nos tampos das mesas, no chão e nas paredes ao tom azul escuro que também domina o ambiente, sem esquecer as cortinas de veludo que nos escudam do mundo exterior. Outro feature que marca o ambiente são as paredes laterais revestidas a folha de carvalho às quais foi adicionado um padrão de leques e penas pintados à mão. A iluminação é integrada e aplicada a dois níveis, incluindo candeeiros que emitem umaa luz mais quente e acolhedora.
A comida
“O Encanto vai um pouco ao encontro de vários pedidos que temos cada vez mais no Belcanto, de menus vegetarianos ou vegan”, comenta Avillez. O novo restaurante, cujo arranque oficial aconteceu na passada quarta-feira, reflete uma tendência na alimentação que, em alguns pontos do globo, aponta para a sustentabilidade do que se come. Longe de ser um statement anti-carne ou anti-peixe, até porque fundamentalismos não entram no seu léxico gastronómico, Avillez assume que a tentação em ter proteína animal foi muita. Ao menu único que existe no Encanto começou por tirar a carne. Só depois percebeu que a carta 100% vegetariana acabaria por deixá-lo “muito satisfeito”. Mas antes foram meses de testes até porque certezas eram precisas: “Acima de tudo, este é um desafio que lançámos a nós próprios. Conseguir fazer um menu de qualidade em que a pessoa sai a pensar que teve uma grande refeição independentemente de ser ou não vegetariana. Vamos estar em constante evolução, sabemos que vamos melhorar, mas estou muito feliz com os testes e com o primeiro dia”.
O menu único 100% vegetariano aplicado ao fine dining resulta, tanto quanto sabe, num projeto inédito em Portugal, ao mesmo tempo que reconhece a existência de restaurantes a dar cartas interessantes nesta categoria gastronómica. No Encanto, a ideia passa por promover o produto sem que esteja “demasiado mascarado com especiarias”. Ao trabalho de criatividade há muita técnica associada, garante ainda. “O Encanto é um bocadinho o Belcanto há uns anos mas sem a proteína animal. Marca uma nova era da alta cozinha que também pode ser vegetariana.”
A conjugação de texturas e o jogo de contrastes são protagonistas em cada um dos 12 momentos que compõem o menu que apresenta uma “estrutura mais ou menos clássica”, com snacks, entradas frias e quentes, pratos considerados como principais e sobremesas. A carta poderá parecer, à primeira vista, invulgar dada a descrição enigmática dos ingredientes — da “gema confit, tupinambo, caldo de feijão e trufa” ao “arroz, trufa preta, espinafres e manteiga de ovelha” —, mas as dúvidas são desfeitas assim que a comida chega à mesa na companhia de uma explicação: do que é e de como se come (no caso dos snacks, por exemplo, há uma ordem que maximiza a degustação).
No Encanto, a equipa trabalha com legumes da estação, sazonais e sustentáveis, vindos de pequenos produtores de diferentes pontos do país. A matriz portuguesa, com influências do mundo, está presente no menu que goza de legumes, folhas, sementes, algas, cogumelos, flores, frutos, ovos e queijos. “Há momento que é um creme de tremoço com uma azevia de favas. Neste caso, é um pastel de massa tenra de favas que vem com um creme de tremoço. Faz-me lembrar a primeira vez que fui ao Líbano há já vários anos, entrei numa cantina libanesa e puseram-me em cima da mesa tremoços e favas ainda na vagem para eu abrir e comê-las cruas. Depois temos um prato de cenoura com temperos algarvios, com leite de pinhão de Alcácer do Sal. Isto é completamente português, faz-nos viajar para aqueles pinhões acabados de partir”, exemplifica.
Fermentações, crocantes feitos a partir de farinhas de arroz e mandioca, e sumos de vegetais fazem parte da proposta gastronómica. O chef explica ainda como usa a manteiga de cacau para fazer um pequeno invólucro para um “ovo de ouro”, que é uma alusão a um prato emblemático do Belcanto — mas este é um ovo de húmus. Destaque ainda para o amendoim crocante com influências tailandesas. Nas bebidas dominam os vinhos de menor intervenção, na sua grande maioria portugueses, escolhidos pelo sommelier Francisco Cunha, mas também cervejas artesanais ou sumos, infusões e kombuchas caseiros.
“Acima de tudo, o grande desafio é a pessoa fazer o menu e não sentir falta da carne. Não estar a meio do menu a pensar ‘Agora comia um bife ou um peixe grelhado’. O feedback, ainda muito curto, é que as pessoas ficam muito contentes com o menu, ficam surpreendidas e, de facto, não sentem falta de comer o bitoque no fim.”
O que interessa saber
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Nome: Encanto
Abriu: a 17 de março
Onde fica: Largo de São Carlos, 10, Lisboa
O que é: um restaurante com um menu único 100% vegetariano no mesmo local onde antes estava o famoso Belcanto
Quem manda: José Avillez
Quanto custa: o menu de 12 momentos custa 95 euros por pessoa, sem bebidas; o menu de vinhos é 45 euros para cinco momentos e 65 euros para oito momentos
Uma dica: deixe-se levar pelas sugestões vínicas do sommelier da casa
Contacto: 211 626 310
Horário: terça a sábado, das 19h às 22h30
Links importantes: encantojoseavillez.pt (reservas) e encanto_joseavillez (Instagram)