A Conferência Episcopal Portuguesa, órgão máximo da Igreja Católica em Portugal, recusa comentar as suspeitas de encobrimento e ocultação de casos de abuso sexual de menores que recaem sobre bispos católicos portugueses ainda no ativo, uma conclusão que foi adiantada na terça-feira pela comissão independente que está a investigar a história dos abusos de menores na Igreja portuguesa, embora sem referir nomes concretos.
O Observador perguntou ao porta-voz da CEP, padre Manuel Barbosa, qual a reação da Igreja Católica portuguesa a esta revelação, bem como quais as medidas que a Igreja planeia implementar em resposta à notícia, no sentido de identificar e responsabilizar os bispos em causa. O sacerdote, porém, disse que a Igreja não tem qualquer comentário a fazer nesta fase. “Não vou comentar pois este e outros assuntos fazem parte de um processo cujo resultado será entregue à CEP no seu devido tempo para apreciação“, disse Manuel Barbosa, numa resposta escrita.
“Apenas reitero a disponibilidade da CEP e bispos para colaborar com a comissão independente a todos os níveis nas etapas que estão previstas neste processo, nomeadamente os encontros com os bispos diocesanos e o estudo dos arquivos diocesanos”, acrescentou o padre Manuel Barbosa.
Na terça-feira, numa conferência de imprensa destinada a assinalar os primeiros três meses de trabalho, a comissão independente revelou que já recebeu 290 testemunhos válidos de presumíveis vítimas de abusos sexuais de menores cometidos por elementos da Igreja Católica. Os abusos terão ocorrido de modo disperso por todo o país e de modo consistente desde a década de 1950 até aos dias de hoje. Estão em causa denunciantes entre os 13 e os 88 anos, que sofreram abusos entre os 2 e os 17 anos de idade. O número de vítimas deverá ser muito superior, uma vez que mais de metade dos casos revelaram a alta possibilidade de incluir outras vítimas. Dos 290 casos, 16 foram enviados ao Ministério Público, por dizerem respeito a casos que ainda não ultrapassaram o prazo de prescrição e que ainda podem ser investigados pelas autoridades civis.
A comissão independente, que é coordenada pelo pedopsiquiatra Pedro Strecht, revelou ainda que já foi possível identificar indícios de encobrimento e ocultação de casos de abuso sexual por parte da hierarquia da Igreja Católica, incluindo por bispos portugueses que ainda hoje se encontram no ativo — mas que a comissão optou por não nomear. “Há situações em que nos apercebemos da tal situação de encobrimento e ocultação“, disse Pedro Strecht, sublinhando que existem “mecanismos de defesa, negação, projeção, deslocamento” nas instituições.
“Existia muito a prática da deslocação da pessoa abusadora de local para local, como se anteriormente o local fosse visto como o determinante, e não a pessoa em si”, clarificou o coordenador da comissão. “Temos referência a bispos anteriores e bispos no ativo.” Pedro Strecht não revelou os nomes dos bispos a que se refere. Em 2019, na série de reportagens “Em Silêncio”, o Observador revelou que a Igreja Católica portuguesa tinha ocultado pelo menos três casos de abusos de menores ao longo dos últimos 15 anos.
A comissão independente disse ainda que está a tentar reunir-se individualmente com todos os bispos portugueses, para obter um retrato mais pormenorizado da situação nas suas dioceses, mas até agora cinco dos 21 bispos portugueses não responderam aos dois pedidos de reunião enviados pelos membros da comissão. Mais tarde, através do porta-voz da sua diocese, o presidente da Conferência Episcopal, D. José Ornelas, garantiu que todos os bispos vão colaborar com a comissão independente.
A comissão independente foi anunciada em novembro do ano passado, quando, ao fim de quase quatro décadas de escândalos de abusos na Igreja em todo o mundo e sobretudo na sequência da reforma que o Papa Francisco tem promovido dentro da Igreja desde 2018, a Conferência Episcopal Portuguesa decidiu confiar a uma comissão independente uma investigação histórica sobre os abusos sexuais de menores na Igreja em Portugal, à semelhança do que tem acontecido em vários países. Ainda em novembro, foi anunciado que o pedopsiquiatra Pedro Strecht, o especialista nas questões da infância e adolescência que ganhou especial notoriedade por ter sido o médico que acompanhou as vítimas do caso Casa Pia, tinha sido convidado pela Igreja portuguesa para coordenar esta comissão.
Em janeiro, a comissão independente entrou em funcionamento, começando a recolher testemunhos e a consultar arquivos eclesiásticos, de modo a pintar um retrato tão real quanto possível sobre a história dos abusos de menores na Igreja em Portugal ao longo das últimas décadas. Nas primeiras semanas, o número de testemunhos recolhidos pela comissão já superava os 200. Espera-se que o relatório final da comissão esteja pronto ainda este ano e seja divulgado em dezembro.
A comissão é composta pelo pedopsiquiatra Pedro Strecht, pela socióloga Ana Nunes de Almeida, pelo psiquiatra Daniel Sampaio, pelo juiz jubilado Álvaro Laborinho Lúcio, pela assistente social Filipa Tavares e pela cineasta Catarina Vasconcelos. O grupo de trabalho está disponível para receber testemunhos através do contacto 91 711 00 00 e de várias outras formas de contacto disponíveis na página da comissão na internet.