1

Que comissão é esta?

O organismo dá pelo nome de “Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais contra as Crianças na Igreja Católica Portuguesa“.

A decisão de lançar uma comissão independente para investigar a dimensão histórica da crise dos abusos sexuais de menores na Igreja Católica em Portugal foi anunciada em novembro de 2021 pelo presidente da Conferência Episcopal Portuguesa, o bispo de Setúbal, D. José Ornelas.

Portugal tornou-se assim o mais recente país do universo católico a anunciar a criação de uma comissão deste género para fazer frente a uma crise dramática que se tem alastrado a toda a cristandade desde a eclosão dos primeiros casos, no início da década de 1980, nos Estados Unidos.

Igreja Católica portuguesa cria comissão para fazer estudo histórico dos abusos sexuais de menores pelo clero

Ao longo das últimas quatro décadas, vieram a público, em dezenas de países, milhares de casos de abuso sexual de menores cometidos por padres, bispos e outros elementos da hierarquia católica — e começou a fazer-se luz sobre as técnicas usadas durante décadas pela Igreja para ocultar e encobrir os casos, silenciando as vítimas, protegendo os abusadores e salvaguardando a sua reputação.

Em países como os Estados Unidos, Austrália, Irlanda, Alemanha ou França já foram realizados estudos independentes, promovidos pela própria Igreja ou pelas autoridades do Estado, que permitiram clarificar a dimensão histórica dos abusos.

A intervenção do Papa Francisco em 2019 (que convocou bispos de todo o mundo para uma cimeira em Roma) foi decisiva para um acelerar deste processo de investigação na Igreja em todo o mundo. O caso francês foi o mais recente: em outubro do ano passado foi divulgado o relatório final de uma comissão independente naquele país, dando conta de milhares de casos de abuso cometidos ao longo dos últimos setenta anos.

As notícias oriundas de França reabriram a ferida em Portugal e levaram a uma multiplicação de apelos dirigidos à Conferência Episcopal Portuguesa, que no mês seguinte determinou a criação desta comissão independente.

2

Quem faz parte?

A comissão é coordenada pelo pedopsiquiatra Pedro Strecht, nome sonante na área do estudo científico dos abusos sexuais de menores. Foi um dos principais especialistas responsáveis pelo acompanhamento das vítimas do processo Casa Pia.

Fazem ainda parte da comissão:

  • A socióloga Ana Nunes de Almeida, investigadora do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, especialista no problema dos maus-tratos a crianças.
  • O psiquiatra Daniel Sampaio, professor catedrático jubilado e especialista nas questões da família, crianças e adolescência.
  • O juiz conselheiro Álvaro Laborinho Lúcio, ex-ministro da Justiça.
  • A assistente social Filipa Tavares, formada em terapia familiar e experiente no trabalho com crianças e jovens institucionalizadas.
  • A realizadora Catarina Vasconcelos, que participa na comissão como membro externo e diz trazer para o grupo de trabalho a voz, as perguntas e as perspetivas da sociedade civil sobre o problema.

Pedopsiquiatra Pedro Strecht vai liderar comissão independente para investigação de abusos sexuais na Igreja em Portugal

3

O que vai investigar?

A comissão apresenta a sua missão central como “realizar um estudo sobre abusos sexuais praticados contra crianças e adolescentes (dos 0 aos 18 anos de idade) no seio da Igreja Católica Portuguesa“.

Esta segunda-feira, numa conferência de imprensa em Lisboa, o pedopsiquiatra Pedro Strecht sublinhou que o objetivo da comissão é “esclarecer o melhor possível tudo quanto possa ter acontecido em Portugal nos últimos anos no que se refere a esta realidade tão complexa“.

Strecht sublinhou que o lema da comissão — “Dar Voz ao Silêncio” — aponta no sentido da necessidade de valorizar o “sofrimento” das vítimas “que permaneceu omisso até aos dias de hoje”.

“A comissão existe para estar ao lado das pessoas”, disse, manifestando a “disponibilidade total para as escutar, a seu tempo e com tempo“.

“Muitas vezes, o silêncio impera”, concordou Daniel Sampaio. “Um silêncio associado a um profundo sofrimento na esfera afetivo-sexual”, disse o psiquiatra que também integra a comissão, salientando que a comissão quer “ouvir os testemunhos” e “ouvir o que não foi dito”.

O objetivo da comissão é desenvolver um relatório, que deverá ser divulgado no final de 2022, e que permita ter uma ideia mais abrangente sobre a crise dos abusos de menores na Igreja em Portugal ao longo das últimas décadas. Segundo os membros da comissão independente, o relatório procurará perceber quantas vítimas houve no país, quantos perpetradores, que tipo de crimes ocorreram, que resposta lhes deu a Igreja, que padrões de comportamento podem ser identificados pela hierarquia, que crimes ainda podem ser investigados e julgados e que consequências ainda podem ocorrer.

Isto significa, segundo confirmou Pedro Strecht aos jornalistas, que, além dos casos de abuso sexual, também os métodos usados pela Igreja Católica para os encobrir vão estar sob escrutínio da comissão.

De acordo com a socióloga Ana Nunes de Almeida, que expôs o método que será seguido pela comissão, o grupo não descarta expandir o objeto de estudo ao longo do trabalho. “Estamos a entrar quase às escuras num terreno desconhecido, silenciado. Não temos dúvidas de que ao começarmos a escavá-lo vamos ser surpreendidos por outras pistas“, disse, garantindo que a comissão pretende “ir atrás delas”.

O período em estudo serão os 72 anos compreendidos entre 1950 e 2022.

4

Como o vai fazer?

Na apresentação do método de investigação, os membros da comissão independente regressaram várias vezes ao lema do projeto para sublinhar que a principal ferramenta do estudo será dar voz ao silêncio das vítimas.

A principal tarefa da comissão será, com efeito, ouvir as vítimas que queiram falar.

Segundo Pedro Strecht, a comissão tem total disponibilidade para escutar qualquer vítima que queira abordar a comissão, garantindo-lhe que, “sem medo, vergonha ou culpa, tenha, finalmente, um espaço de referência onde se sinta confortável para poder falar“.

Para isso, a comissão vai ter, já a partir desta terça-feira, dia 11 de janeiro, um conjunto de formas de contacto disponíveis:

  • Um site na internet (darvozaosilencio.org) com todas as informações sobre a investigação em curso;
  • Um questionário online que pode ser preenchido por quaisquer “pessoas que foram vítimas destas formas de mau trato durante a sua infância e adolescência”.
  • Um número de telefone (+351 91 711 00 00), através do qual é possível falar com os membros da comissão à distância ou agendar um encontro presencial com os membros da comissão.
  • Um endereço de e-mail (geral@darvozaosilencio.org).

Mas o contacto com as vítimas, embora seja a principal fonte de informações para a investigação, não será o único método de trabalho. Pedro Strecht garantiu que será feito um “estudo estatístico de todo o material recolhido” — que vai incluir informações publicadas na imprensa portuguesa ao longo dos últimos 70 anos, contactos com figuras de referência na área da proteção de menores e, sobretudo, material recolhido nos arquivos da própria Igreja Católica.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

5

A Igreja está disposta a ajudar?

Esta é a pergunta para um milhão de euros.

Logo desde o momento do anúncio da comissão, em novembro, a hierarquia da Igreja Católica multiplicou-se em garantias de que a comissão seria totalmente independente da Conferência Episcopal. “Não temos medo“, disse na altura D. José Ornelas, referindo-se aos potenciais resultados do estudo.

Esta quinta-feira, na conferência de imprensa, Pedro Strecht reiterou que a Conferência Episcopal “depositou total autonomia e total confiança” na comissão — embora seja a Igreja a financiar os trabalhos do organismo.

O financiamento não tem a ver com a isenção“, assegurou Pedro Strecht, repetindo que será ele próprio a denunciar publicamente quaisquer pressões institucionais, caso as viesse a sentir por parte da Igreja Católica. “A Conferência Episcopal Portuguesa já fez o caminho interior de procurar esclarecer” o que se passou, disse.

Não influenciar o destino da investigação é, por isso, o primeiro modo de a Igreja ajudar no processo.

Mas, além disso, é preciso que a Igreja Católica esteja disposta a abrir os seus arquivos aos investigadores da comissão. Em Portugal, existem 21 dioceses católicas, lideradas por 21 bispos autónomos — e é aí que se encontram os principais arquivos eclesiásticos do país.

É aí que reside um problema fundamental: nem todos os bispos portugueses estão exatamente de acordo quanto à necessidade e à urgência de avançar com uma investigação de fundo relativamente aos abusos sexuais de menores. Basta recordar como em 2019 vários bispos portugueses recusaram criar comissões de proteção de menores nas suas dioceses — acabando a fazê-lo apenas porque o Papa Francisco determinou que tal medida era obrigatória. Mais recentemente, vários bispos expressaram ao Observador visões distintas sobre a possibilidade de implementar uma comissão de investigação nacional.

É a cada um dos 21 bispos portugueses que cabe a decisão de facultar ou não o acesso ao arquivo da sua diocese.

Esta quinta-feira, questionado na conferência de imprensa sobre se a comissão já contactou com os 21 bispos portugueses, Pedro Strecht assumiu que não, mas apenas com o presidente da CEP (D. José Ornelas), o vice-presidente (D. Virgílio Antunes, bispo de Coimbra) e o secretário da CEP (padre Manuel Barbosa).

Igreja pode avançar com investigação sobre abusos sexuais nas últimas décadas em Portugal. O que pensam os 27 bispos que vão decidir

“Não falámos com os 21 bispos, mas sentimos que há uma posição clara e inequívoca da Igreja” quanto à necessidade de avançar com a investigação, garantiu Pedro Strecht. “Há unanimidade, não tenho dúvida.

O coordenador da comissão garantiu que tem ouvido, da parte da liderança da CEP, garantias de facilitação do acesso aos arquivos. Resta saber se todos os bispos vão pensar do mesmo modo.

E que tipo de situações poderão ser encontradas nos arquivos da Igreja? Os membros da comissão acreditam na possibilidade de ter havido casos de abuso sexual que chegaram ao conhecimento da hierarquia eclesiástica e que acabaram por ser desvalorizados, abafados ou arquivados — e sobre os quais ainda poderá haver documentos arquivados nas dioceses.

Em maio de 2019, o Observador publicou uma reportagem sobre um caso de alegados abusos na década de 1970, que na altura chegou ao conhecimento da diocese de Coimbra. Na época, foram trocadas várias cartas entre o gabinete episcopal e a família das vítimas, nas quais a hierarquia procurava serenar os ânimos sem escândalo público — ou seja, encobrir o caso.

Várias das cartas trocadas na altura, assinadas por elementos do gabinete episcopal de Coimbra, ainda se encontram no arquivo do tribunal da Figueira da Foz, uma vez que o caso chegou mesmo à justiça. São documentos deste género, entre outros, que a comissão antecipa poder encontrar nos arquivos da Igreja.

6

Que crimes vão ser analisados?

Segundo explicou aos jornalistas o juiz conselheiro Álvaro Laborinho Lúcio, esta foi uma das primeiras questões que os membros da comissão tiveram de clarificar antes de se lançarem ao trabalho investigativo. Afinal, e tratando-se de um trabalho que abrange sete décadas (e as múltiplas alterações legislativas que se foram verificando, bem como a mudança de mentalidades que se registou), o que classificar como abusos sexuais de menores?

“Que critério objetivo podemos encontrar para definir os atos sexuais?”, questionou Laborinho Lúcio. “Podemos estar a falar de conceitos, de preconceitos, de moralistas falsos”, continuou, admitindo que isso levaria a comissão por um caminho impossível de dominar.

“Acordámos num critério absolutamente objetivo. Atos sexuais são todas aquelas práticas sexuais que, no direito penal português, são suscetíveis de integrarem crimes de natureza sexual. Os atos sexuais que vamos trabalhar são todos aqueles que têm relevância no código penal“, esclareceu Laborinho Lúcio.

O ex-ministro da Justiça lembrou, contudo, que há uma diferença a ter em conta: o facto de a lei penal nunca se poder aplicar retroativamente. Laborinho Lúcio lembrou este pormenor para explicar que, se este estudo fosse uma investigação criminal, nunca poderia ler atos ocorridos na década de 1950 à luz do código penal contemporâneo, uma vez que a lei só se aplica a factos que ocorram depois da sua aprovação.

Todavia, Laborinho Lúcio explicou que esta “não é uma investigação criminal”, mas sim um estudo sobre práticas abusivas no seio da Igreja. Por isso, “vamos usar o atual critério desde 1950 até agora” para classificar os abusos.

Isto significa que qualquer ato que hoje seja considerado um crime vai contar para a estatística que a comissão planeia construir — mesmo que, na época em que aconteceu, o facto não constituísse um crime.

Este método levará a comissão a ter de distinguir entre “denúncias” e “testemunhos”.

Todas as histórias que chegarem à comissão e que possam constituir uma verdadeira denúncia — ou seja, que apontem para a possibilidade de um crime que seja classificado como tal no momento em que ocorreu e que ainda não tenha prescrito — não vão ser avaliadas pela comissão, mas encaminhadas de imediato para as autoridades civis.

Para este efeito, a comissão já estabeleceu um contacto direto com a Procuradoria-Geral da República, na pessoa da própria procuradora-geral, mas particularmente através de uma ponte concreta com o gabinete da família, criança e jovem. A comissão também já estabeleceu um canal de comunicação direto com a direção nacional da Polícia Judiciária, para o envio destas denúncias.

A comissão vai, assim, abster-se de investigar estes casos, incluindo-os apenas nas estatísticas de casos remetidos às autoridades. Por outro lado, a comissão espera aprofundar os casos classificados como “testemunhos“, ou seja, histórias que digam respeito a atos que na época em que ocorreram não fossem classificados como crimes (embora hoje o sejam), ou que digam respeito a crimes já prescritos.

Laborinho Lúcio esclareceu que a comissão também vai dar conhecimento às autoridades civis destes casos, para que as pessoas envolvidas possam buscar respostas se assim o entenderem.

Simultaneamente, a investigação vai também incidir sobre os comportamentos da hierarquia da Igreja Católica nos casos em que tenha havido queixas apresentadas à instituição. Ana Nunes de Almeida sublinhou que o inquérito feito às vítimas inclui perguntas sobre se apresentaram queixa e sobre o modo como a Igreja as tratou nesse processo.

7

Quando conheceremos as conclusões da investigação?

A comissão independente prevê apresentar um relatório final em dezembro de 2022.

Segundo explicou Ana Nunes de Almeida, a comissão planeia “trabalhar sistematicamente todos os inquéritos que caírem na base de dados até 31 de julho“, o que não impede que qualquer pessoa venha a dar o seu testemunho depois dessa data e ainda ver a sua história incluída no relatório final.

Os membros da comissão independente salientaram, porém, que o relatório não terá a pretensão de apresentar um número final para a crise dos abusos de menores na Igreja Católica: a estatística será sempre a “ponta do icebergue“, que se estima em “25% ou 30%” do total.

Ainda assim, a comissão portuguesa não pretende seguir o exemplo do que foi feito em França e apresentar uma projeção matemática para a totalidade do país com base na amostra que for obtida.

Não sabemos ainda o que vamos encontrar“, disse Pedro Strecht. “Mais do que números, interessam-nos as pessoas.”