A divulgação de notícias sobre os abusos sexuais de menores por elementos da Igreja Católica em Portugal durante esta semana contribuiu para acelerar a colaboração dos bispos católicos portugueses com a comissão independente que está a investigar a história deste problema no país ao longo das últimas décadas, revelou ao Observador o pedopsiquiatra Pedro Strecht, coordenador dessa comissão.

Na terça-feira, numa conferência de imprensa em Lisboa, a comissão revelou que pretende reunir-se individualmente com todos os 21 bispos católicos portugueses para recolher informações sobre o problema nas respetivas dioceses. Mas também assumiu que, até esse momento, cinco deles ainda não tinham respondido aos dois pedidos de entrevista formulados pela comissão.

Questionado pelo Observador sobre se a divulgação de múltiplas notícias sobre o assunto na sequência daquela conferência de imprensa tinha contribuído para que os bispos em falta dessem sinal de vida à comissão, Pedro Strecht respondeu afirmativamente. “Um contactou diretamente, os restantes estarão disponíveis a partir do final de abril”, disse Strecht, clarificando que o primeiro contactou a comissão para marcar uma data para a reunião e os restantes contactaram o grupo de trabalho para manifestar a disponibilidade para a entrevista após abril.

“Os contactos estão feitos e a comissão está segura de que todos os senhores bispos vão colaborar, sendo agora uma questão de acertar agendas para depois da Semana Santa e da reunião plenária dos senhores bispos, a acontecer antes do final de abril”, disse, confiante, o psiquiatra ao Observador. “Vai correr bem.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Encobrimento por bispos no ativo e os 16 casos reportados ao Ministério Público

A comissão independente, que entrou em funções em janeiro deste ano e que deverá apresentar o relatório no final em dezembro, revelou na terça-feira que já recebeu 290 testemunhos válidos de vítimas de abuso sexual de menores por elementos da Igreja Católica e que encaminhou 16 casos para a Procuradoria-Geral da República, para que o Ministério Público possa decidir sobre eventuais ações judiciais a tomar.

Os testemunhos validados pela comissão independente dizem respeito a um período temporal entre a década de 1950 e a atualidade, tendo sido denunciados por pessoas entre os 13 e os 88 anos de idade, que sofreram os abusos com idades entre os 2 e os 17 anos.

Abusos na Igreja. 290 testemunhos, 16 casos enviados ao MP e indícios de encobrimento. As primeiras conclusões da comissão independente

O grupo de trabalho coordenado por Pedro Strecht revelou também que, nos primeiros três meses de trabalho, já foi possível encontrar indícios de encobrimento de vários casos de abuso sexual de menores, que terão sido ocultados pela hierarquia da Igreja Católica, incluindo por bispos portugueses ainda hoje no ativo.

Há situações em que nos apercebemos da tal situação de encobrimento e ocultação”, disse Pedro Strecht, sublinhando que existem “mecanismos de defesa, negação, projeção, deslocamento” nas instituições. “Existia muito a prática da deslocação da pessoa abusadora de local para local, como se anteriormente o local fosse visto como o determinante, e não a pessoa em si”, clarificou o coordenador da comissão.

Temos referência a bispos anteriores e bispos no ativo.” Pedro Strecht não revelou os nomes dos bispos a que se refere. Em 2019, na série de reportagens “Em Silêncio”, o Observador revelou que a Igreja Católica portuguesa tinha ocultado pelo menos três casos de abusos de menores ao longo dos últimos 15 anos.

Em declarações ao Observador na quarta-feira, o porta-voz da Conferência Episcopal Portuguesa, padre Manuel Barbosa, recusou comentar estas suspeitas que recaem sobre bispos no ativo. “Não vou comentar pois este e outros assuntos fazem parte de um processo cujo resultado será entregue à CEP no seu devido tempo para apreciação“, disse Manuel Barbosa, numa resposta escrita.

“Apenas reitero a disponibilidade da CEP e bispos para colaborar com a comissão independente a todos os níveis nas etapas que estão previstas neste processo, nomeadamente os encontros com os bispos diocesanos e o estudo dos arquivos diocesanos”, acrescentou.

Conferência Episcopal garantiu que todos os bispos iam colaborar — mas o presidente ainda não reuniu com a Comissão

Na conferência de imprensa de terça-feira, a comissão independente explicou que os bispos portugueses não têm sido unânimes na disponibilidade para ajudar o organismo na investigação.

De acordo com a socióloga Ana Nunes de Almeida, que pertence à comissão, o grupo pretende reunir-se individualmente com todos os bispos portugueses para avaliar a situação em cada uma das 21 dioceses católicas do país. Porém, após duas rondas de pedidos de reunião, a comissão ainda só tinha conseguido reunir-se com 11 bispos, estando uma reunião com um outro bispo agendada para quarta-feira.

Quatro bispos tinha manifestado disponibilidade para uma reunião, mas ainda não foi possível marcá-la por motivos de agenda. Contudo, cinco bispos não tinham respondido de todo à comissão, avançaram os elementos desta equipa independente.

Depois da conferência de imprensa, o presidente da Conferência Episcopal Portuguesa, D. José Ornelas, garantiu ao Observador, através do seu porta-voz, que todos os bispos vão colaborar com a comissão independente, mas explicou também que o que estava combinado entre os bispos e o grupo de trabalho era a realização destas reuniões após a Assembleia Plenária da CEP, marcada para os dias 25 a 28 de abril.

Esta quinta-feira, o semanário Expresso noticiou que D. José Ornelas era justamente um dos cinco bispos que ainda não tinham respondido à comissão independente, embora o bispo de Leiria-Fátima, que preside à CEP desde 2020, explicasse que ainda não o tinha feito por vários motivos, incluindo o facto de ter chegado à diocese há pouco tempo e ainda não conhecer bem a realidade, mas também o facto de ter ficado na semana passada retido em Roma por ter contraído Covid-19 e precisar de ficar uma semana em isolamento, e ainda o facto de a Igreja se encontrar atualmente a viver a Semana Santa, muito ocupada no que respeita a celebrações religiosas.

No entanto, Ornelas garantiu tanto ao Expresso como ao Observador que está a planear reunir-se com a comissão depois da assembleia plenária que ocorre no fim deste mês.

Esta quinta-feira, vários bispos portugueses confirmaram ao Observador já estar em contacto com a comissão independente. De acordo com informações recolhidas junto de várias dioceses, os bispos de Lisboa (D. Manuel Clemente) e Funchal (D. Nuno Brás) já se reuniram com a comissão independente. Por seu turno, o bispo das Forças Armadas, D. Rui Valério, disse ao Observador ter reunião marcada para o dia 29 de abril.

A comissão independente foi anunciada em novembro do ano passado quando, ao fim de quase quatro décadas de escândalos de abusos na Igreja em todo o mundo e sobretudo na sequência da reforma que o Papa Francisco tem promovido dentro da Igreja desde 2018, a Conferência Episcopal Portuguesa decidiu confiar a uma comissão independente uma investigação histórica sobre os abusos sexuais de menores na Igreja em Portugal, à semelhança do que tem acontecido em vários países.

Explicador. Como vai funcionar a comissão independente para investigar os abusos sexuais na Igreja desde 1950?

Ainda em novembro, foi anunciado que o pedopsiquiatra Pedro Strecht, o especialista nas questões da infância e adolescência que ganhou especial notoriedade por ter sido o médico que acompanhou as vítimas do caso Casa Pia, tinha sido convidado pela Igreja portuguesa para coordenar esta comissão.

Em janeiro, a comissão independente entrou em funcionamento, começando a recolher testemunhos e a consultar arquivos eclesiásticos, de modo a pintar um retrato tão real quanto possível sobre a história dos abusos de menores na Igreja em Portugal ao longo das últimas décadas. Nas primeiras semanas, o número de testemunhos recolhidos pela comissão já superava os 200. Espera-se que o relatório final da comissão esteja pronto ainda este ano e seja divulgado em dezembro.

A comissão é composta pelo pedopsiquiatra Pedro Strecht, pela socióloga Ana Nunes de Almeida, pelo psiquiatra Daniel Sampaio, pelo juiz jubilado Álvaro Laborinho Lúcio, pela assistente social Filipa Tavares e pela cineasta Catarina Vasconcelos. O grupo de trabalho está disponível para receber testemunhos através do contacto 91 711 00 00 e de várias outras formas de contacto disponíveis na página da comissão na internet.