Estamos habituados à modesta estatura cultural da pátria. Mas não deixa de ser curioso que num lugar historicamente marcado pela religião, onde muitas pessoas acreditam que a salvação da alma está em Jesus Cristo, onde tantas outras culpam a herança judaico-cristã dos principais males do mundo, seja difícil encontrar obras clássicas do cristianismo. Onde está a tradução portuguesa das cartas de São Jerónimo? Da Suma Teológica? Catarina de Sena, Bossuet?

Sendo este o panorama, são de saudar as iniciativas em sentido contrário. Há quem se destaque por um trabalho notável nesse campo, nas últimas décadas. Entre outros nomes possíveis, dois exemplos: Isidro Lamelas, estudioso da Patrística que, além de outros trabalhos, publicou As Origens do Cristianismo — Padres Apostólicos (Paulinas), onde se incluem textos como a Didaché, a “Carta aos Coríntios” de Clemente de Roma ou as Cartas de Inácio de Antioquia; e a equipa liderada por Cristina Pimentel e Arnaldo Espírito Santo, que nos brindou com alguns dos maiores monumentos da história do pensamento: Confissões (INCM) e Da Trindade (Paulinas), ambos de Santo Agostinho.

Vem esta conversa a propósito da mais recente edição agostiniana: Da Interpretação do Génesisdois livros contra os maniqueus e Da Interpretação Literal do Génesis — uma obra inacabada, textos reunidos pela Paulinas num único volume, traduzido e comentado por Paulo Ramos. Trata-se das duas primeiras tentativas de Agostinho descodificar, versículo a versículo, a teoria da criação exposta nos capítulos iniciais do Génesis, as quais acabam por resultar numa panorâmica sobre alguns dos problemas fundamentais do cristianismo, ainda em fase de fixação doutrinal no seio da Igreja. Os principais interlocutores são os maniqueus, a seita à qual o próprio Agostinho estivera ligado e que depois da conversão, em 386, passou a combater com a verve e minúcia que o caracterizam.

O carácter incorpóreo de Deus; a bondade essencial de toda a criação; a relação entre fé e conhecimento; a hierarquia dos entes; o mal como privação; são muitos os tópicos que, em análises mais ou menos desenvolvidas, vão sendo explorados nestes comentários. Mas, mais do que dissecar cada uma das teses defendidas por Agostinho, o espírito da época presente convida a destacar um aspeto de fundo: o fulgor espiritual que anima estas incursões pelas páginas do Génesis. Não encontramos aqui a reserva prudente do pensador contemporâneo que, levemente enfadado com o estado do mundo, se contenta em oferecer algumas tiradas elegantes acerca de objetos estéticos “interessantes”. Menos ainda o refluxo erudito daqueles que, ao escrever, parecem apenas cumprir calendário académico ou tatear o degrau seguinte da carreira profissional. Encontramos antes um homem a tentar perceber qual é a verdade acerca da nossa situação, neste estranho lugar onde aterrámos um dia. Sobressai uma possibilidade existencial que moldou o Ocidente e que hoje, numa época de ressaca filosófica, num ambiente de burguesismo empanturrado, soa quase a desvario de contra-cultura: a de procurar sem cinismo a verdade sobre tudo isto — e de procurá-la numa instância superior à desorientada inteligência humana.

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A atenção dedicada aos enunciados do Génesis explica-se pela vontade de Agostinho furar a opacidade da existência e, claro, pelo estatuto reconhecido aos livros da Bíblia. “Sagrada Escritura” não é para o autor um título convencional, tolerado pelo uso, como para a maioria dos ouvidos atuais; é a justa designação de um conjunto de textos que, segundo a fé, constitui uma das principais formas de Deus se revelar. As inquirições acerca de matérias tão peculiares como a razão pela qual o sol, a lua e as estrelas só foram criados no quarto dia podem parecer caricatas à sensibilidade pós-moderna. Mas correspondem ao esforço de Agostinho não deixar escapar nada do sentido de palavras que, por serem inspiradas pelo Espírito Santo, têm um valor incomensurável com o dos discursos dos filósofos pagãos, por muito brilhantes que estes sejam.


Título: Da Interpretação do Génesis — dois livros contra os Maniqueus/ Da Interpretação Literal do Génesis — uma obra inacabada
Autor: Santo Agostinho
Editora: Paulinas
Tradução: Paulo Ramos
Páginas: 191

Além de ensinamentos sobre a criação, tentativas de desembrulhar o sentido de passagens particularmente complicadas e o estabelecimento de princípios orientadores para a leitura dos livros sagrados, Agostinho atira-se por vezes a uma espécie de fenomenologia da vida moral. É o caso desta passagem:

Mesmo agora, quando alguém cai no pecado, aquilo que ocorre em cada um de nós não é muito diferente do que aconteceu entre aqueles três — serpente, mulher e homem. Primeiro acontece a sugestão, por pensamentos ou pelos sentidos do corpo — visão, tato, audição, paladar ou olfato. Assim que ocorre esta sugestão, se o nosso desejo não se tiver inclinado ainda para o pecado, é repelida a astúcia da serpente; se, pelo contrário, se tiver movido, será como se a mulher tivesse sido já persuadida. Por vezes, contudo, a Razão reprime e refreia o desejo perturbado. Quando isto acontece, não caímos em pecado, mas somos coroados por tão ingente luta. Se, pelo contrário, a Razão cede e resolve que deve ser feito o que a libido tiver agitado, o homem é afastado de toda a vida feliz como se do Paraíso.”

Embora não ocupe uma parte muito considerável do todo, a leitura desta história — o famoso episódio que envolve Adão, Eva e a serpente — é um dos aspetos mais relevantes do volume. É, afinal de contas, um dos primeiros esboços da doutrina da Queda que veremos explorada em várias outras obras de Agostinho, e que influenciará enormemente a história do pensamento subsequente.

A partir do relato segundo o qual os pais da humanidade teriam incumprido o único mandamento vigente no Paraíso, que consistia em não comer da árvore do conhecimento do Bem e do Mal, Agostinho compreende a situação presente dos homens como definida pelo desregramento de “amar excessivamente o seu poder”, pelo desejo de ocupar o trono da realidade que só a Deus pertence. Daí a ênfase na promessa que a serpente usa para seduzir: “sereis como deuses”. Resumindo muito, a ideia de Agostinho é a de que a inquietação que define a nossa vida comum está ligada ao facto de nos termos assumido como centro de todas as coisas e de procurarmos a vida feliz numa ilusória pretensão de auto-suficiência.

A influência da antropologia agostiniana nos autores medievais é notória, mas estende-se muito para lá desse período. No século XVII, em França, por exemplo, a sua conceção do homem será uma das principais fontes de reflexão. Na singularíssima apologética de Pascal, mostrar que o desfasamento entre a medida ideal por que nos regulamos e a experiência concreta de todos os dias tem uma possível explicação na leitura que Agostinho faz da Queda é uma das principais apostas; nas Máximas, pondo de lado a linguagem teológica, La Rochefoucauld chama a atenção para a “omni-presença” do amor-próprio, esse auto-centramento sublinhado por Agostinho, nos comportamentos humanos mais variados.

Dito isto, o que lemos em Da Interpretação do Génesis e Da Interpretação Literal do Génesis não é ainda Santo Agostinho no pleno exercício das suas qualidades. Não há a vibração existencial e a profundidade analítica que marcam a sua obra-prima, as Confissões; nem o tour-de-force de obras de maior fôlego como Da Trindade ou Cidade de Deus; nem aquele misto de rasgo interpretativo, proximidade pastoral e brilho literário da “catedral de palavras” que os Comentários aos Salmos formam. Em todo o caso, é um bom contributo para conhecermos melhor o pensamento do grande pensador cristão, e uma iniciativa excelente no que toca a tornar o diálogo entre o cristianismo e a cultura nacional um pouco menos primário.