Foi revelada a primeira fotografia do buraco negro supermassivo que existe no centro da Via Láctea, o Sagittarius A*. É também a segunda imagem da História de um buraco negro, após a fotografia captada na galáxia Messier 87. A fotografia revelada esta quinta-feira é a primeira prova concreta de que o corpo celeste supermassivo no centro da galáxia onde a Terra fica é de facto um gigantesco buraco negro. E foram precisos tantos dados para a conseguir que, se eles fossem impressos em folhas A4, a pilha de papéis chegaria à Lua.

O que se vê na imagem não é o buraco negro em si: estes corpos celestes têm uma força gravítica de tal modo intensa que nada, nem mesmo a luz, lhes pode escapar. O que revela a silhueta do buraco negro é mesmo o gás incandescente a ser engolido por esta região central, a que se chama sombra — é dentro dela que está o ponto em que todas as leis da física se quebram, a singularidade. “A nova visão captura a luz curvada pela poderosa gravidade do buraco negro, que é quatro milhões de vezes mais massivo que o nosso Sol”, explica o comunicado de imprensa do Observatório Europeu do Sul, responsável pela descoberta.

Embora gigantesco, por estar tão longe, o buraco negro Sagittarius A* é praticamente impossível de detetar a partir da Terra com recurso ao espetro da luz visível. Seria como olhar para Lua e procurar por um donut, comparam os cientistas. Por isso, os astrónomos do projeto Event Horizon Telescope (EHT) olharam para o espetro infravermelho e recolheram imagens todas as noites desde 2017.

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“Resultados revolucionários sobre a Via Láctea”

Os cientistas do Event Horizon Telescope (EHT), um projeto de radiotelescópios em rede que observa os dois buracos negros mais próximos do planeta Terra, marcaram para esta quinta-feira às 14h de Lisboa uma conferência de imprensa para anunciar “resultados revolucionários sobre a Via Láctea”. Não se sabia o que vai ser anunciado: apenas que estava relacionado com o Sagittarius A*, uma fonte de rádio no centro da galáxia que se julga ser um buraco negro supermassivo.

As expetativas já eram altas porque esta é a mesma equipa que, em abril de 2019, revelou a primeira fotografia de um buraco negro, que fica na galáxia elíptitca Messier 87. E também por causa do que está a ser interpretado como uma pista sobre o que aí vinha num artigo do Observatório Europeu do Sul, envolvido neste projeto, publicado na semana passada: “Como se pode ver, realmente chegamos a um ponto em que estamos literalmente a escrever o bilhete de identidade do Sgr A*; e nenhuma identidade está completa sem uma foto. Poderá a colaboração do Event Horizon Telescope fornecer uma?”, questiona.

E prossegue: “O EHT é tão poderoso que foi capaz de captar a primeira imagem de sempre de um buraco negro — o supermassivo no centro da galáxia M87, a mais de 50 milhões de anos-luz. Esta imagem foi libertada em 2019 e os próximos resultados do EHT são amplamente aguardadas“.

A primeira imagem de um buraco negro. Como se fotografa algo invisível e o que mostra do grande “mistério da física”?

Tão perto e tão longe. Sgr A*, o buraco negro que os cientistas fotografaram

Sagittarius A*, nome que os cientistas encurtam para Sgr A*, é um buraco negro com uma massa quatro milhões de vezes maior que a do Sol. Está a 27 mil anos-luz da Terra — ou seja, seriam necessários 27 mil anos para lá chegar se se viajasse à velocidade de luz, que é de quase 300 milhões de metros por segundo. E está mais perto da Terra do que o retratado na primeira imagem de um buraco negro.

Mas não é dele a primeira imagem de um buraco negro: entre a Terra e o Sgr A* há mais objetos a atrapalhar as observações, uma vez que se está a olhar para dentro da Via Láctea. Para observar a galáxia Messier 87, os cientistas olham para fora da Via Láctea, numa direção onde a vista está mais desimpedida. Na verdade, a imagem não mostra o buraco negro em si (que é invisível), mas a luz a ser engolida por ele ao ultrapassar o horizonte de eventos — a fronteira a partir da qual a força gravítica é tanta que nada lhe pode escapar.

Esta é a primeira fotografia de sempre de um buraco negro. Einstein estava correto, outra vez

As primeiras indicações de que o Sgr A* existia são dos anos 30, quando o engenheiro Karl Jansky tentava fazer girar uma antena construída por ele com recurso a quatro pneus Ford Modelo-T. O objetivo era encontrar possíveis fontes de interferência nas transmissões de rádio. Karl Jansky percebeu, sem surpresa, que muitas dessas interferências vinham de eventos meteorológicos, como tempestades. Mas detetou também uma distorção leve e constante que vinha da constelação de Sagitário. É nessa área do céu noturno que, a partir da Terra, parece estar o centro da Via Láctea.

Vinte anos mais tarde, os astrónomos começaram a descobrir mais fontes de rádio muito brilhantes pelo universo fora, também elas localizadas no centro de galáxias vizinhas. Chamara-lhes “quasares” — “quase estrelas” — porque se pareciam com estrelas com uma luz muito fraca. Só em 1963 é que as contas de Maarten Schmidt revelaram que, afinal, os quasares deviam irradiar intensamente quando observadas no espetro das ondas de rádio (não da luz visível). Uma delas, a  3C 273, deviam emitir 1.000 vezes mais energia que toda a Via Láctea.

Os cientistas começaram a procurar respostas para o mistério dos quasares. Primeiro, veio a teoria: a energia que observavam e detetavam em Terra era matéria incandescente a ser sugada para um buraco negro. Depois, veio a prática: procurar provas que suportem essa hipótese no centro da Via Láctea, onde ficava o quasar mais próximo da Terra. Mas havia um problema: se a dificuldade em estudar quasares fora da galáxia era a enorme distância até elas, que não permitia discernir estrelas e nuvens gasos, por cá o problema eram as nuvens interestelares de gases e poeiras que absorviam a luz visível vinda do centro da Via Láctea.

Por isso é que, já nos anos 70, se começaram as observações no espetro do infravermelho. Charles Townes estudou os movimentos do gás em torno do Sgr A* e descobriu que, pelo menos nas suas proximidades, a massa do quasar devia ser duas a quatro milhões de vezes maior que a do Sol — características compatíveis com as de um buraco negro. Mas isso não bastava: afinal, a movimentação do gás podia ser justificada por outros fatores além da gravidade, como os campos magnéticos. E a tecnologia não permitia ainda chegar mais perto ainda do centro da região-mistério da Via Láctea — apenas a alguns anos-luz de distância, o que pode influenciar os cálculos.

Ao longo dos anos 90, além das observações das nuvens de gás no centro da Via Láctea, os cientistas começaram a olhar para as estrelas. Chegaram mesmo a encontrar estrelas a um mês-luz do Sgr A* que orbitavam este corpo celeste a uma velocidade de 2.000 quilómetros por segundo. Foi a prova mais flagrante de que o quasar Sgr A* era um corpo com uma massa muito compacta e com uma força gravítica estonteante. Após a descoberta de uma estrela a 17 horas-luz do Sgr A* (quatro vezes a distância entre o Sol e Neptuno), os cientistas concluíram que ele era mesmo um buraco negro supermassivo. Estávamos em 2002. Desde então, os cientistas têm analisado corpos celestes cada vez mais próximos dele em busca de mais informação. E de uma fotografia.

Dois buracos negros fotografados em três anos. Onde estão as diferenças?

A imagem do buraco negro no centro da Via Láctea e a que foi captada na galáxia M87 parecem muito parecidas, mas os dois corpos celestes são muito diferentes: afinal, Sgr A* é mil vezes mais pequeno e menos massivo que o M87*. Sera Markoff, presidente do Conselho Científico do EHT, disse que “temos dois tipos de buracos astrofísicos completamente diferentes e duas massas de buracos negros muito diferentes, mas perto da fronteira dos buracos negros eles são incrivelmente semelhantes”.

Isso é importante porque tal informação tem implicações na interpretação da Teoria da Relatividade Geral de Einstein. O mistério em torno dos buracos negros é que os físicos não conseguem descrever as leis da física que reinam no seu interior — são pontos do tecido espaço-tempo (o tecido de que é feito o universo, composto por três dimensões espaciais e a linha do tempo) com condições de tal modo extremas que todas as leis da física conhecidas se quebram.  Mas estas evidências significam que a teoria de Einstein “governa até perto destes objetos” e que “quaisquer diferenças que vemos de mais longe devem dever-se às diferenças nos materiais que circundam os buracos negros”.

O exército de telescópios que fotografou o buraco negro na Via Láctea

Foi precisa uma imensa rede de radiotelescópios para conseguir uma imagem do Sgra A*, composta pelo Observatório de Rádio do Arizona (EUA), Atacama Pathfinder Experiment (Chile), IRAM 30m Telescope (Espanha), Telescópio James Clerk Maxwell (Hawai), Grande Telescópio Milimétrico (México), Submillimeter Array (Hawai), Atacama Large Millimeter Array (Chile) e o Telescópio do Polo Sul (Antártida).

Todos juntos chamam-se Event Horizon Telescope, um projeto financiado pela União Europeia através do Conselho de Investigação da Europa. Usa uma técnica chamada “Interferometria de Longa Linha de Base”, em que um sinal de rádio de origem astronómica é captado por diferentes telescópios. Quando vários radiotelescópios espalhados pela Terra são programados para trabalhar em conjunto, passam a funcionar como um único observatório com o tamanho do nosso planeta.

O que este exército faz é contornar o buraco negro. Literalmente. Como olhar diretamente de nada vale, uma vez que a região em si é completamente invisível, os oito telescópios olham antes para as proximidades dele. A matéria, quando é sugada para dentro do buraco negro, pode ficar a temperaturas muitíssimo altas por causa da fricção. O gás forma um disco quente ao redor do buraco negro e cai, fazendo com que o buraco negro cresça. É a luz desse gás luminoso que o Event Horizon Telescope capta.

Parece simples, mas exige um pouco mais de trabalho quando essa informação chega até à Terra. É que nem todos os telescópios obtêm a mesma informação ao mesmo tempo, portanto, o que os telescópios no deserto do Atacama viram pode escapar ao olhar do telescópio na Antártida. Isso dá uma tarefa extra aos cientistas por detrás do Event Horizon Telescope: desenvolver um algoritmo que junta as informações detetadas em cada um dos telescópios e que preenche as lacunas deixadas pelos dados que não foram captados por nenhum deles. Só com todos esses passos terminados é que se consegue obter uma verdadeira imagem da silhueta de um buraco negro. Aquela que vimos esta quinta-feira.

Dança estelar no Sgr A* provou outra vez teoria de Einstein

Uma das últimas grandes novidades vindas do Observatório Europeu do Sul foram anunciadas em abril de 2020, quando as observações realizadas através do Very Large Telescope, no Chile, demonstraram que uma das estrelas em órbita do buraco negro supermassivo situado no centro da Via Láctea se desloca tal como previsto pela Teoria da Relatividade Geral de Albert Einstein.

S2, uma estrela que fica no enxame estelar denso em torno do Sgr A*, tem uma órbita em forma de roseta — não de uma elipse, como infere a teoria de Isaac Newton. As observações mostram que a estrela aproxima-se do buraco negro até uma distância de 20 mil milhões de quilómetros — 20 vezes superior à que separa a Terra do Sol — e entra numa velocidade correspondente a cerca de 3% da velocidade da luz. Dá uma volta ao buraco negro a cada 16 anos, mas em vez de cumprir uma órbita como a que é tradicionalmente encontrada num planeta em torno de uma estrela, ela cumpre várias elipses em diferentes planos à volta do buraco negro.

A órbita da S2 precessa, o que significa que a localização do ponto mais próximo do buraco negro supermassivo muda a cada órbita, de tal modo que a órbita seguinte se encontra rodada relativamente à anterior, fazendo assim com que o seu percurso siga a forma de uma roseta. A Relatividade Geral dá-nos uma previsão precisa de quanto é que a órbita muda e as medições mais recentes correspondem exatamente à teoria”, anunciou há dois anos o observatório.

O próximo passo desta investigação passará pelo Extremely Large Telescope (ELT), um telescópio ainda maior do Observatório Europeu do Sul. Com ele “talvez possamos capturar estrelas suficientemente próximas do buraco negro para sentirem efetivamente a rotação, o spin, deste objeto supermassivo”, explicou um dos cientistas do projeto, Andreas Eckart. Isso seria importante porque isso permitiria medir o spin (um fator relacionado com a rotação do corpo celeste) e determinar com maior exatidão a massa do buraco negro no centro da Via Láctea.

Mas o que são buracos negros?

A primeira vez que alguém falou sobre a ideia de um corpo de tal modo maciço que nada, nem mesmo a luz, lhe podia escapar foi em 1783, quando o geógrafo John Mitchell enviou uma carta ao químico Henry Cavendish que dizia o seguinte: “Se o semi-diâmetro de uma esfera da mesma densidade que o Sol na proporção de quinhentos para um, e supondo que a luz é atraída pela mesma força e proporção à sua massa com outros corpos, toda a luz emitida por esse corpo seria obrigada a retornar contra ele pela sua própria gravidade”.

Hoje sabemos que esses corpos se chamam buracos negros, que são “objetos exóticos” porque representam um fenómeno especial no universo e que são “tão densos, onde a gravitação é tão intensa, que a própria luz não chega a sair e nós cá fora não o vemos”, descreveu o físico José Pedro Mimoso ao Observador por altura do lançamento do último livro de Stephen Hawking. Esses buracos negros nascem quando o núcleo de uma estrela muito grande esgota e ela colapsa. Durante grande parte da vida, a energia que emite é suficiente para manter a integridade das camadas dessa estrela. Mas se ela cessa todas essas camadas são atraídas para o centro pela força da gravidade. Quando explodem nasce o buraco negro.

Quando isso acontece, surge à volta dele uma região chamada horizonte de eventos. Quem ultrapassar o horizonte de eventos já não consegue escapar à ação do buraco negro e é inevitavelmente engolido por ele. Além disso, se alguém estiver longe do buraco negro e vir um objeto a caminho dele, vai deixar de o ver assim que ele passar o horizonte porque a radiação vai mudar de frequência e desviar-se para o vermelho. Ou seja, a certa altura, quem está antes do horizonte de eventos deixa de o ver apesar de ainda estar cá fora.

É a chamada censura cósmica, que nos impede de ver o que está dentro de um buraco negro e que nos permite apenas teorizar que ele é como uma ostra: a concha é a fronteira do buraco negro, o tal horizonte de eventos, e lá dentro há de estar uma espécie de pérola, ou seja, a singularidade. Mas sendo assim, mesmo olhando para um buraco negro do lado de fora do horizonte de eventos, o que podemos saber sobre ele?

Imagine que um extraterrestre lhe bate à porta e lhe pede para descrever o planeta Terra. Poderia dizer-lhe que a Terra é uma esfera ligeiramente achatada nos pólos que tem 6.370 quilómetros de raio. Que tem muitas montanhas e fossas, florestas e desertos, pessoas e animais. Podia ainda dizer que há pessoas com olhos azuis ou verdes, loiras, ruivas e com várias cores de pele, umas muito altas e outras muito baixas. Só depois de dar toda essa informação ao extraterrestre visitante é que ele poderia ficar com uma boa ideia de como é o planeta Terra.

A todas essas informações, o físico John Wheeler chamou “cabelos”. A Terra tem muitos cabelos mas, segundo ele, os buracos negros são carecas porque nada podemos saber sobre eles. No máximo teriam “dois ou três cabelos” porque as únicas coisas que podemos descobrir são a massa e o momento angular, isto é, a velocidade a que rodam em torno de si mesmos. Ou seja, bastaria dizer a massa que ele tem e quantas vezes por segundo é que ele gira, ou seja, o momento angular, para se conseguir descrever qualquer buraco negro do universo.

No entanto, em 1974, Stephen Hawking disse que podia não ser bem assim — e que talvez tivesse encontrado uma forma de casar a teoria de Einstein com a mecânica quântica. Diz esse ramo da física, dedicada a estudar as partículas mais pequenas que os átomos, que o vazio realmente não existe no cosmos. Aquilo que pensamos ser o vazio é, na verdade, um caldo feito de partículas, que constituem a matéria, e antipartículas, que constituem a antimatéria. E esses dois ingredientes tão depressa se juntam como se aniquilam um ao outro, emitindo luz. No intervalo, dava para saber mais sobre buracos negros.